De tempos e [passa]tempos
Crítica de Para contar estrelas, do Grupo Cirandela (Criciúma/SC).
Por Diogo Spinelli
Sexta-feira, dia 22 de julho de 2022.
Itajaí, Santa Catarina, Brasil.
17h05m. Começo a escrever essa crítica logo após ter chegado de assistir à obra Para contar estelas, do Grupo Cirandela, de Criciúma (SC), na programação do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha.
Minutos antes, minha companheira de cobertura crítica, Heloísa Sousa, havia me convidado para sair para passear um pouco pela cidade antes de sairmos para o nosso próximo compromisso, às 19h30. Neguei o convite, com a justificativa de que eu gostaria de adiantar a minha escrita, justamente porque logo mais teríamos outra experiência como espectadores, e principalmente, porque havíamos combinado de publicar nossos textos até às 13h00 do dia seguinte. Desse modo, não havia tempo a perder.
Foi apenas depois de quase meia-hora diante da tela do computador, exatamente às 17h31m, quando já havia rascunhado alguns parágrafos sobre o trabalho, que percebi a contradição explícita nesse meu processo de escrita para falar sobre uma obra que justamente vem exaltar a importância dada ao tempo livre, e de como cada vez mais somos levados a restringir nossos horários de lazer e de ócio, e a setorizar os momentos nos quais nos damos o direito de sermos felizes e de relaxar.
Para contar estrelas nos apresenta a dois guardadores de tempo, Prócion e Kuiper – nomes advindos de uma estrela e de um astrônomo, respectivamente. Desde a origem do universo, os dois tem a função de catalogar diferentes tipos de tempo, seguindo as ordens dadas pelo Relógio, para que, caso algum dia o universo deixe de existir, seja possível reconstituí-lo.
Flagramos a dupla justamente em sua chegada na Terra, aos sons incessantes das badaladas do Relógio, que em cena, aparece representado por um monstruoso – e belo – conglomerado de relógios disposto na ponta de um instrumento musical inventado, composto por um baixo e uma escaleta. Além dessa estrutura, a minuciosa cenografia da obra é composta por outras galharufas igualmente intrigantes, criadas a partir da mistura entre objetos cotidianos (como caixotes, peneiras, tampas de panela) e outros não tão cotidianos assim (como lentes de aumento, varas de pescar, armações de guarda-sol e outros tipos de traquitanas). Associados, esses objetos compõem e descompõem maquinários fabulosos, conferindo à obra uma atmosfera de antiquário: como se tivéssemos sido convidados a brincar e a inventar histórias com as velharias e os tesouros de algum baú esquecido em um sótão ou em algum porão empoeirado.
Ademais da cuidadosa visualidade do trabalho, que ainda inclui uma porção de efeitos cênicos que enchem os sentidos e o imaginário do público, outros dois aspectos também se sobressaem na obra, auxiliando na condução de sua fábula. O primeiro deles é a musicalidade, composta parte por músicas incidentais pré-gravadas, e parte executadas ao vivo pela dupla de atores Bruno Andrade e Priscila Schaucoski, que assinam também a música do espetáculo. E o segundo, a influência circense – a direção do trabalho é de Reveraldo Joaquim e Yonara Marques, do Grupo de Teatro Cirquinho do Revirado, também de Criciúma – que se faz presente nas figuras dos dois guardadores de tempo, tanto pelo jogo clownesco que os atores estabelecem entre si, quanto por uma série de gags físicas incorporadas em suas ações, como também na manipulação dos adereços de cena, sobretudo numa alusão às técnicas de malabares.
Em um curto espaço de tempo, somos apresentados às figuras de Prócion e Kuiper, entendemos sua função e sua retidão no cumprimento das demandas do Relógio, e identificamos que esse, por sua vez, exige para si cada vez mais todo e qualquer tempo livre do universo. Após usar da artimanha de um tempo-livro para capturar o tempo livre de uma das crianças do público – em uma divertida e bem conduzida cena interativa que tem como ponto de partida uma alusão à Dom Quixote de la Mancha e na qual as fronteiras entre teatro, jogo e brincadeira são borradas – Kuiper começa a questionar-se não somente sobre seu ofício, mas sobre a tirania e o autoritarismo do Relógio. Em vez de catalogar distintos tempos como forma de back-up de segurança do mundo existente, seus procedimentos-padrão, regras e normas parecem agora visar somente a manutenção do sistema capitalista financeiro e informacional no qual – distopia das distopias – não somente o planeta Terra está inserido, mas, aparentemente, todo o universo.
É a partir dessa delicada tomada de consciência que se desenrola o trecho final do trabalho. O espetáculo termina em uma nota agridoce, com um final em aberto, mas que deixa vislumbrar que ir contra um sistema – e derrotá-lo – não é tarefa simples. Talvez Prócion e Kuiper voltarão a cumprir seus procedimentos-padrão sem mais questionar as ordens do Relógio. Talvez continuem cada vez mais desafiando-o, criando tempos livres para si mesmos em suas rotinas igualmente regradas por ele. Ou talvez ainda, possam se juntar a outras e outros guardadores de tempo para que, juntos, forjem a revolução aludida por Kuiper. Nunca saberemos.
Numa sociedade em que as crianças vêm cada vez mais possuindo grades de compromissos similarmente ocupadas ou até com menos espaços ociosos do que a de adultos, e que sem muitas vezes nos darmos conta, continuamos dando ao Relógio todo o tempo que ele nos demanda, o que resta é agradecer ao Grupo Cirandela por ter criado a oportunidade de compartilhar conosco esse tempo livre em formato de tempo-peça, e pensar nesses tempos como, eles mesmos, microrrevoluções.
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