segunda-feira, 25 de julho de 2022

Crítica de "Amar é Crime" - por Heloísa Sousa

 AMAR É CRIME

Jônata Gonçalves (SC)



[Tem cheiro de puta]


Começarei esse texto já explicitando a crise interna que tenho ao falar de masculino e feminino, homem e mulher, e ter que recorrer a esses binarismos na linguagem para dialogar sobre a obra “Amar é Crime” de Jônata Gonçalves (SC). Essas duas ficções que criamos para performar o gênero em todas as suas implicações políticas e elaborações de aparências, ao mesmo tempo que são conceitos que movem discussões e pautas urgentes para pensar as relações sociais, são também encaixes limitados que desconsideram toda uma variedade possível de gêneros e individualidades. Mas, seguiremos falando nesses termos, tentando vislumbrá-los como apenas uma das dezenas de alternativas e não os eximindo de toda sua falência discursiva. Faço essa introdução porque penso que um dos principais pontos da peça em questão são os graus de objetificação do que é dito como feminino.

Tem um livro de autoria da historiadora de moda inglesa Aileen Ribeiro, que considero um dos melhores escritos sobre moda e gênero. O livro se chama “Dress and Morality” (“Traje e Moralidade”), foi publicado em 1986 e apresenta uma pesquisa extensa da autora sobre como a ideia de moralidade foi se vinculado aos trajes desde a Antiguidade até o século XX na Europa. A moral é uma variável que ganha espaço na opinião pública e serve ao controle dos comportamentos de uma comunidade, em contexto ocidental e europeu, a Igreja e o Estado possuem forte influência nessa elaboração e passam a colocar na aparência dos corpos um peso moralista que evidencia hierarquias de classe, gênero e raça.

A roupa tem muito mais um peso psicológico e de pertencimento coletivo do que um peso funcional. O que também significa que o modo como nos vestimos segue mais um padrão social pré-estabelecido do que um movimento de escolhas conscientes e racionais. Há nas pessoas um desejo por manter essas tradições e evitar as mudanças, por isso que as modas precisam ter aceitação social massiva para serem integradas como vestimenta comum. Ao mesmo tempo, temos grupos que pensam as roupas como práticas de autoconhecimento e reflexo das nossas identidades fluidas e mutáveis; o que nos faz compreender que as primeiras experimentações que temos nas performances de gênero e de identidade são através da vestimenta.

O mais impactante da pesquisa de Ribeiro (1986) é como ela mostra através de documentos escritos e imagéticos como a restrição moral sobre a vestimenta recai fortemente sobre o corpo das mulheres. Na lógica patriarcal e na estruturação do sistema capitalista de expropriação e exploração das terras, dos bens e dos sujeitos, a objetificação do corpo da mulher torna-se uma medida urgente para configuração de uma sociedade. Dessa forma, as narrativas religiosas passam a cumprir um papel de identificar no corpo das mulheres a tentação, o demoníaco, o risco de desvio da norma e dos bons costumes que trarão harmonia para a sociedade instituída. O corpo da mulher é frequentemente atacado e relacionado a esse personagem do demônio e para tanto necessita ser coberto e vigiado. Todo esse discurso cristão não passa ileso de contradições, quando exige que o corpo da mulher esteja coberto e que esta se apresente sem nenhum traço de sexualidade (ou sensualidade), ao mesmo tempo em que cobra o modo como ela “conquista” outros homens, mantém o casamento e servem à procriação. A contradição se repete quando esses grandes governantes, proprietários, religiosos e até intelectuais disseminam a ideia de “humildade” através das vestes, mas se apresentam de modo que a aparência os distinga radicalmente dos mais pobres da mesma comunidade. O bom e velho “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço” ou “na prática, a teoria é outra”. Mas, não se trata de uma contradição diametralmente oposta, porque carrega ainda na própria prática a reiteração violenta do discurso proferido, quando o mesmo país que mais mata mulheres trans e travesti é também o que mais consome pornografia com essas mulheres em cena.

Outra coisa que se revela no livro de Ribeiro (1986) é que a marginalização do corpo das mulheres foi tão sistemática e o reconhecimento de suas aparências como um objeto da sociedade, destituindo-as de subjetividade, que aqueles homens que usassem roupas ou acessórios ditos femininos seriam igualmente rechaçados, demonizados e marginalizados por se reduzirem a esse estereótipo. O que colabora fortemente com a base dos discursos homofóbicos e transfóbicos.

Em “Amar é Crime”, o ator Jônata Gonçalves traz para a cena texto do livro de contos homônimo do escritor pernambucano Marcelino Freire, conhecido também por seus escritos poéticos sobre relações homoafetivas e lgbtqia+. A encenação se apresenta como um monólogo aos moldes de um one man show, onde o ator narra e revive as situações através do contorno do seu corpo. Essa estratégia de encenação faz com que se escolha uma cenografia simples, reduzida a manipulação de um único objeto transformável, porque o vínculo da obra com o espectador está na atuação e na capacidade de narrar e envolver a plateia. E nesse sentido, o ator converge todos os elementos de cena em si mesmo com muita maestria. É a presença cênica de Jônata que nos torna acessível a dramaturgia, o ritmo, o espaço e as imagens das personagens. Neste sentido, a atuação sustenta um vínculo ímpar com o público, seja pela exatidão de seus movimentos pelo espaço, com economia e exatidão de ações, seja pela impostação certeira da voz ou ainda pela habilidade em trazer camadas de expressividade no rosto que encarna todas as personagens citadas na trama. Confundindo-se frequentemente com as figuras relatadas, o ator flerta com a possibilidade autobiográfica. Quem desconhece o texto original de Marcelino Freire pode crer que se trata de suas narrativas pessoais permeadas pela poesia do escritor; mas, na realidade, é a poesia do escritor que embala as vivências do ator e, possivelmente, de muitas pessoas na plateia. Essa percepção é reiterada pelas fotografias de infância do ator projetadas ao final da peça, como uma estratégia documental em uma encenação que tem base fictícia. As imagens ao final parecem sublinhar e tentam fechar o entendimento da obra para uma conexão com as vivências do ator, como se atestasse a veracidade dos fatos narrados.

Assumindo duas performances de gênero em seu corpo através do figurino, o ator torna visível seu organismo e a passagem das peças, acessórios e cosméticos ditos femininos pela sua pele. Esse jogo faz com que ele transite entre representações que parecem citar mulheres cis, travestis, drag queens e gays; entendendo essa aparência feminina como fluxo e experimentação. Mas, ainda assim, mesmo com todos os tecidos e cosméticos, o que os outros desejam é o consumo do corpo, a carne tida como objeto a ser penetrado e dominado. Os desejos e sonhos dessas personagens são frequentemente aguçados e interditados em seguida, revelando que nesse mundo não há espaço para todes.

Na peça, há uma conexão direta entre o feminino e o imaginário, uma expectativa. A aparência “de mulher” elaborada no corpo do ator é mais próxima da lógica das drag queens onde os traços são exagerados, acumulados. O rosto é refeito, a altura, o vestido esvoaçante, a delicadeza das mãos e da cruzada de perna, o pescoço longo, o sorriso e a mirada simpática. É quase sempre um feminino fora de si e que se pretende alcançar, vestir aquele vestido, quem sabe um dia. Junto a isso, as músicas de Nina Simone são reproduzidas e cantadas, I put a spell on you, esses desejos parecem ser sempre algo estrangeiro e inalcançável, a glamourização em torno dessa silhueta midiatizada pelas produções hollywoodianas. Fico pensando nas letras, músicas e imagens de femininos midiatizadas no Brasil, em língua portuguesa e que não são usadas com frequência em obras teatrais ou coreográficas e acabam por ignorar o modo como esse país tropical inventa suas narrativas.

Uma das questões que nos fica é da relação entre os projetos políticos e sistematizados de opressão dos corpos pela diversidade de gênero e orientação sexual, e a implicação afetiva em tudo isso. Amar é crime pode ser lida também como indagação ou como afirmação irônica e indignada. Retoma a discussão sobre o afeto, sobre o direito ao que se sente, embora saibamos que as questões que sustentam os dispositivos vigilantes e opressores estão para além dos afetos. Entretanto, amor e acolhimento, palavras-conceitos-sentimentos também sequestrados por certas instituições, não deixam de ser uma base para a criação de vínculos e comunidades, aprender a estar juntos. Uma parte, talvez enrijecida, de mim, pensa que a questão não é o amor, tem outras operações em torno das opressões, mas então, lembro do livro “Tudo sobre o amor: Novas perspectivas” (2021) de bell hooks (cuja leitura deixei interrompida) e sua célebre frase “aprender a amar é uma forma de encontrar a cura”.

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