RINHA
Grupo
Risco de Teatro (SC)
[O
problema do saco de pancadas é que ele não arrebenta]
A
arte elabora, frequentemente, um espaço social alternativo onde
pensamentos, práticas e corpos marginalizados são acolhidos e
postos em comunhão. Como espaço próprio de experimentação
estética e valorização do entendimento do mundo por outras vias
menos racionais, dezenas de grupos feministas, negros, indígenas,
lgbtqia+ se unem em torno da prática artística formando pequenas
utopias de resistência aos sistemas que cerceiam as individualidades
e suas formas variadas de estar no mundo. A arte também,
frequentemente, ameaça o pensamento vigente que sustenta as
realidades opressoras quando expõe seus mecanismos e exibe cenas que
subvertem a as fronteiras dos imaginários que nos são impostos.
Embora, paradoxalmente, sendo também uma prática social e humana,
ela revela a reprodução das formas sociais em massa em seus
próprios processos criativos e palcos, sendo então, autocriticada
por si mesma na sua estruturação.
O
livro “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade”
(1990) de Judith Butler talvez tenha sido um dos livros que mais me
atravessou nos estudos sobre gênero, seja pela construção do
pensamento da autora sobre a performance de gênero, seja pela sua
habilidade em articular diversas teorias de outras feministas para
construir a questão do seu livro. Apesar da leitura complexa e nada
fácil, sempre penso como seria fundamental que homens estivessem
fazendo essa leitura como muitas mulheres e outras identidades de
gênero vem fazendo.
Ao
citar a escritora e téorica Monique Wittig, a autora do livro pontua
que:
“Para
Wittig, a restrição binária que pesa sobre o sexo atende aos
objetivos reprodutivos de um sistema de heterossexualidade
compulsória; ela afirma, ocasionalmente, que a derrubada da
heterossexualidade compulsória irá inaugurar um verdadeiro
humanismo da ‘pessoa’, livre dos grilhões do sexo. [...] Em
outras palavras, só os homens são ‘pessoas’ e não existe outro
gênero senão o feminino: ‘o gênero é o índice linguístico da
oposição política entre os sexos. E gênero é usado aqui no
singular porque sem dúvida não há dois gêneros. Há somente um: o
feminino, o ‘masculino’ não sendo um gênero. Pois o masculino
não é o masculino, mas o geral’”. (BUTLER, 1990).
O
masculino tendo se construído como o geral ou o universal se percebe
como não sendo passível de crítica, todos os outros corpos e
sujeitos fora do reconhecimento padrão de um homem-cis-hetero-branco
acaba sendo o outro e recorre aos estudos e práticas de agrupamento
para pensar e agir modos de não interdição de sua individualidade
e de resistência ao sistema. É por isso, que os estudos de gênero
possuem tantas teóricas mulheres e delineiam o feminismo como grande
espaço de articulação dos infinitos pensamentos sobre as opressões
e hierarquias de gênero que sustentam a sociedade patriarcal.
Do
outro lado, a masculinidade não se pensa, os homens costumam não
ver a si mesmos na mesma lógica da performance de gênero que
compreendemos e pretendem-se naturais e orgânicos em suas formas de
pensar e agir no mundo. Reiterando violências como sendo intrínsecas
a si, consequência biológica do gênero com o qual foram
categorizados a partir da genitália identificada quando bebês.
É
também por isso que vemos tantas produções artísticas sobre
feminismo e as diversas identidades de gênero, mas pouca produção
debruçada sobre a performance da masculinidade, suas violências e
toxicidades agregadas. Na memória, lembro do documentário “The
Mask You Live In” (2015), dirigido por Jennifer Newson (!!!) e que
expõe as consequências emocionais das narrativas também impostas
aos homens sobre como devem se portar no mundo para serem
identificados nos seus gêneros. E eu nem sei se esse documentário
foi visto por tantos homens quanto foi visto por outras mulheres.
O
projeto do Grupo Risco de Teatro (SC) em criar uma obra teatral que
trate sobre a masculinidade tóxica, coloca em cena dois atores –
Rafael Orsi e Rodolfo Lemos – dirigido por Renato Turnes (Cia. La
Vaca), que elaboram juntos uma dramaturgia que centraliza a figura
masculina para expor seu percurso de construção social e suas
contradições. É um projeto que não é comum. A cena costuma
trazer protagonismo para as outras identidades de gênero
marginalizadas, reiterando suas narrativas e singularidades,
colocando o opressor como um outro que sustenta a violência, quase
em um jogo inverso ao modo como a sociedade estrutura os sujeitos. Em
“Rinha” esse outro retorna ao centro, mas não apenas como
afirmação inquestionável de suas ficções, mas como depoimento
passível de provocações até por si mesmo.
Impossível
não lembrar também dos livros da pesquisadora norte-americana bell
hooks que convida os homens ao processo de autorreflexão sobre as
construções em torno do gênero e suas afetividades, para que
possamos vislumbrar a possibilidade de não vivermos em uma eterna
trincheira binária.
O
Grupo Risco opta, então, por trazer a discussão da masculinidade
tóxica, tomando a questão da violência e da agressividade como
marcadores do estereótipo masculino. Interessante observar o convite
a Renato Turner, um artista gay mais velho, para dirigir dois atores
jovens performando uma masculinidade tão estruturada e explícita. É
esse encontro certeiro que parece trazer uma tensão ao próprio
processo criativo, que sustenta inclusive a sensibilidade da obra
mesmo nessa temática, talvez justamente pelo antagonismo da relação
instituída. Quando apresento essa tensão, não digo de eventuais
conflitos pessoais em um processo de criação, mas de pôr juntos a
criar corpos que representam também algum antagonismo social. Para
que o discurso não recaia num artificialismo e exposição cínica
de um pensamento já construído, mas que não reverbera, de fato,
nos corpos criadores. Sempre me questiono sobre a diversidade de
pessoas na ficha técnica, com quem se trabalhou e quais posições
esses indivíduos ocupam nessa listagem. Estar disposto a viver a
tensão no processo, essa microesfera social e política, para
radicalizar efetivamente a experiência de criação.
A
estratégia de encenação de Renato Turner se repete em relação a
“Homens Pink”, outra encenação dirigida por ele e que também
integra a programação desta edição do Festival de Teatro
Brasileiro Toni Cunha. O grupo se propôs a realizar uma sequência
de entrevistas com outros homens a respeito da temática, para
construir uma dramaturgia a partir de seus depoimentos. Com essa
recorrência, Renato parece instaurar, como diretor de teatro, um
procedimento pontual de teatro de pesquisa.
No
entanto, se a obra tem esse procedimento de levantamento documental,
na criação da encenação ela dá uma guinada ao apresentar certa
ficção em cena a partir das narrativas recolhidas. Esse flerte
entre o teatro documental e a ficção é interessante quando permite
o reposicionamento da teatralidade. Essa ficção sendo sempre
apresentada com certa dubiedade e a troca entre a primeira e a
terceira pessoa na linguagem verbal, não nos dando a certeza se se
trata da história do ator ou de outras pessoas, ou de uma mistura
entre elas. Essa incerteza não precariza a obra, mas instaura um eco
de identificação, essa narrativa pode estar em vários corpos para
além de uma personagem.
Mas,
se em “Homens Pink” a encenação concentra-se no corpo do ator,
em “Rinha”, a direção expande o pensamento teatral e apresenta
uma encenação com uma camada minimalista, mas com forte potência
de composição. Os objetos de cena são poucos, mas suficientes para
instaurar um espaço cênico do ringue, do treino e do enfrentamento,
além das posições que os atores ocupam no espaço explorando
centralidade, diagonais e outras linhas, em exemplos explícitos de
uma dramaturgia do espaço, apoiada pelos contornos dados pela
iluminação para as imagens. Pelo movimento dos corpos, o espaço se
instaura, se expande, se contrai, e até cerca o público quando os
atores iniciam e encerram a peça correndo ao nosso redor.
Em
uma conversa pós-apresentação, tomamos conhecimento de que os
atores aprenderam boxe durante os seis meses de processo criativo
para trazer as figuras em cena, aos moldes dos processos em cinema. E
é muito interessante perceber a presença cênica sustentada por uma
coreografia de gestos tão rígidos e que servem a agressão.
Transitando
entre personagens e narrador, eles nos contam a história de um
garoto que presenciava violência doméstica de seu pai contra sua
mãe e era educado a partir dessa mesma prática. Ser agressivo é
algo que vai sendo construído no corpo daquela criança desde cedo.
Ele necessita violentar/bater para se afirmar no mundo; não é
apenas uma defesa ou estratégia de proteção do corpo, mas
instauração de um ego. Conseguir estender o fio narrativo que
contempla a vida da personagem, desde sua infância até a fase
adulta na unidade de tempo de uma peça de teatro é notável.
Retomo
Butler (1990) ao dizer que: “A crítica genealógica recusa-se a
buscar as origens do gênero, a verdade íntima do desejo feminino,
uma identidade sexual genuína ou autêntica que a repressão impede
de ver; em vez disso, ela investiga as apostas políticas, designando
como origem e causa categorias de identidade que, na verdade, são
efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de
origem são múltiplos e difusos”.
Se
Butler diz essa frase para falar sobre o feminino, ela tem a mesma
validade pra lidar com o masculino. E é esse movimento que o Grupo
Risco faz, ao recusar a ideia de naturalidade das performances
reiteradas pelos homens, para apresentá-la como derivada de um
percurso de aprendizagem e repetições que determinam o sujeito e o
torna efeito desse discurso.
O
mais interessante são as problematizações que a dramaturgia traz
sobre a figura em cena. A personagem que narra suas sucessivas brigas
e agressões com detalhes espetacularizados, é a mesma que não se
percebe violenta porque não chega a matar. Existe uma ética que
esse corpo busca sustentar e que expõe suas próprias contradições,
mas também uma busca de se integrar socialmente mesmo nessas
repetições violentas e que ameaçam o próprio corpo social. O que
parece automatismo não é completamente livre de consciência ou de
elaboração individual. Ou ainda, ao expor sua angústia quando a
filha diz que não precisa dele, desafiando o papel social onde ele
baseia a construção do seu ego.
E
uma das questões mais potentes a ser apresentada na obra é sobre a
expectativa do alívio, de que algo irá escapar ou fazer escoar a
tensão retida no corpo. Mas, o alívio não vem. E ainda assim, ele
repete o seu caminho de busca. Nesse ponto, a relação entre dor e
gozo é fundamental, e pano para muitas discussões psicanalíticas.
O prazer elaborado aos moldes de Clube da Luta, obra cinematográfica
de David Fincher. O sangue que escorre na mão rígida é espelho da
imagem do esperma que jorra do pau duro. Nessa ação, o medo é
sublimado, e uma “boa briga é como uma boa foda”.
E
então, percebo o alívio que eu sinto, enquanto espectadora de ver a
exposição do processo de composição dessa narrativa violenta no
corpo dos atores e pelos próprios atores. Autoconsciência das ações
repetitivas que nos compõem e de que como elas surgem na gente. Não
que a obra ou o meu alívio sejam suficientes para transformar
qualquer estrutura ou ainda comportamentos do público ou dos
próprios artistas envolvidos na criação; mas, permite que a
experiência cênica esboce algum tipo de vínculo ou pacto de
comprometimento com a desarticulação desse rígido sistema que
ameaça a existência do meu próprio corpo, por exemplo. E esse
alívio nem é tão comum a outros espectadores, já que os atores
precisam ultrapassar a afeto negativo já instaurado em relação à
masculinidade para que alguma escuta seja efetivada; não á toa, os
poucos momentos de falas que poderiam gerar o riso, apenas deixam
pairar o silêncio intenso do público. Não há conforto diante
daquelas figuras para que algum sorriso aconteça.
As
imagens da encenação não são coadjuvantes e nem inocentes na
composição entre a luz, a dramaturgia do espaço e as coreografias
dos corpos de dois homens com silhuetas grandes e onde reconhecemos
uma masculinidade facilmente (associando inclusive ao medo, a
submissão, ao tóxico). Os golpes duros se organizam como uma dança.
A respiração ofegante torna-se sonoridade. A associação
animalesca é complementada pelas focinheiras, readaptadas aqui como
máscaras, elemento recorrente em figuras masculinas icônicas
violentas, sádicas e loucas do mundo do cinema como o vilão Bane, o
protagonista de “Mad Max” ou o psicopata Hannibal.
Os
búfalos projetados ao fundo também lembram o roteiro de Guillermo
Arriaga para “Amores Brutos”, onde as narrativas de três homens
se cruzam e cenas de rinhas de cachorros simbolizam a violência dos
próprios personagens. Ao final, ouvimos Hurt com a voz grave de
Johnny Cash. Me pergunto se quase nunca há equivalentes na música
brasileira para os sentimentos e discursos que queremos evocar numa
cena, para que não tenhamos que recorrer sempre a músicas em outros
idiomas que limitam o entendimento de algumas pessoas da plateia.
Inclusive, se você assistiu “Rinha”, sugiro que escute
atentamente a letra dessa música final que atravessa bem a
experiência de recepção. Lembro então, de Cash cantando “Folsom
Prison Blues” para presidiários nos EUA.
When
I was just a baby / Quando eu era apenas um bebê
My
mama told me, son / Minha mãe me disse, filho
Always
be a good boy / Seja sempre um bom garoto
Don’t
never play with guns / Nunca brinque com armas
But
I shot a man in Reno / Mas, eu atirei em um homem em Reno
Just
to watch him die / Apenas para vê-lo morrer
When
I hear the whistle blowing / E quando eu escuto o apito
I
hang my head and cry... / Eu seguro minha cabeça e choro...
“Rinha”
também poderia circular por esses espaços, ou quaisquer outros onde
homens fossem a plateia majoritária. “Rinha” precisa circular
por esses espaços, por esse público. Tem uma potência
autorreflexiva na obra, por um grupo que costuma não se
autorrefletir, e que é assumido como projeto pelo Grupo Risco e que
não pode ser colocada de escanteio.