domingo, 31 de julho de 2022

Crítica de "Casa" - por Heloísa Sousa

CASA

Grupo Porto Cênico (SC)




[De nós para os bebês]


Ao final do espetáculo, uma das atrizes distribui fotografias de sua infância ou da infância de seus filhos para as crianças sentadas na primeira fileira. A última criança a receber a foto era um bebê sentado no colo de mãe. A mãe pega a fotografia e mostra ao bebê. Ele pega a foto amassando.

Outra criança menor diz sucessivas vezes “azul”, quando um dos refletores com a cor azul se acende. Ela repete a palavra mesmo quando a cor do refletor muda para um tom entre o roxo e o rosa.

Uma criança que aparenta ter entre dois e três anos, sentada no colo da mãe, observa a peça atentamente, observa as outras crianças ao lado dela também, em vários momentos no decorrer da peça.

Uma criança ri de modo gostoso quando uma das atrizes ri em cena. E cada vez que a atriz ri, a criança ri junto novamente.

Uma das crianças sentada na fileira de trás se mantém concentrada na obra por uns quinze ou vinte minutos. Em um momento, se levanta e diz “quero sair” esboçando um choro. A mãe levanta-se e sai com a criança, no escuro, se esforçando muito para não fazer barulho. O celular cai no chão. Ela apanha. As duas saem. Eu observo.

Se o espetáculo “Casa” do Grupo Porto Cênico (SC) é o resultado de uma pesquisa sobre como criar peças para bebês de zero a três anos de idade; para nós, adultos, o espetáculo é assistir as crianças assistindo ao espetáculo. A primeira infância possui uma série de peculiaridades que exigem outras abordagens para que haja experiência e aprendizagem. Bebês estão descobrindo seu próprio corpo, os outros e o espaço; compreendendo como articular ações que consideramos simples como andar, falar, segurar; além de terem outra forma de comunicação que não é pela articulação dos verbos como nós fazemos. É um corpo se transformando da forma mais radical. Em poucos anos, esses bebês desenvolvem dezenas de habilidades básicas e complexas para conseguir interagir no mundo. Isso junto com toda a sua capacidade sensível, história e subjetividade.

Para os bebês não há os signos, mas a sensorialidade. O que eles têm é o próprio corpo habitando o mundo. Logo, seu modo de apreender está relacionado aos estímulos imagéticos, luminosos, sonoros, táteis, entre outros; a apreensão de uma narrativa não é uma prioridade e nem uma capacidade desenvolvida quando se é muito pequeno. Seu foco está nas sensações e não no encadeamento lógico das situações. Sua urgência de aprendizagem é no sentir o mundo, muito mais do que em compreendê-lo ou capturá-lo racionalmente. Nesse sentido, parece que a obra “Casa” tenta apresentar diferentes sons, cores e movimentos para esse público em um tempo mais ralentado, apostando na serenidade como forma de imersão na experiência. Confiando na atenção dos bebês, as duas atrizes em cena recuperam suas próprias memórias de infância e narram algumas situações com seu próprio corpo, objetos de tecido e instrumentos sonoros. Algumas palavras e situações são repetidas até que se instaure uma imagem, aguardando o tempo da sensação, para em seguida sugerir outra coisa.

Mas, ainda existe um fio narrativo em paralelo que parece querer apresentar uma obra aos adultos que acompanham as crianças. O público a que se destina o espetáculo, provavelmente, não precisa desse fio narrativo; não por incapacidade, de fato, mas por essa não ser uma prioridade em suas experiências no mundo. Enquanto para os adultos, observar a atenção desses bebês para com a obra se transforma na experiência em si.

Escrever sobre uma peça criada para os bebês parece uma atividade desafiadora, visto que o processo criativo da obra é atravessado por uma pesquisa sobre como criar uma experiência estética e cênica para essa faixa etária com todas as peculiaridades que lhe cabe. Seria, talvez, importante conhecer mais da pesquisa para compreender e analisar as escolhas na obra. O que me faz pensar sobre as especificidades das múltiplas linguagens teatrais e como a crítica teatral vai dando conta dessas diferentes técnicas e formas de enunciação e expressão. O que exige diferentes críticos de diferentes saberes escrevendo sobre diferentes obras.

Ainda assim, é possível observar questões da obra postas na própria apresentação. Se a narrativa parece servir mais ao público adulto do que ao público infantil, ela acaba por reiterar papeis sociais questionáveis. Na obra, a figura do pai é uma ausência assumida e abissal, apenas a mãe está ali como casa e para casa, sozinha, cuidando. Cuidando da casa, da criança, entretanto, talvez, quem sabe, se for possível, cuidando de si. A criança chama, ela tenta escapar, mas está ali. A presença dela é inquestionável e aprisiona. “Não é só mãe quem gerencia o cuidado”, diz Venusiane, uma amiga da cidade de onde vim. Mas, na narrativa do espetáculo “Casa”, o cuidado parece restrito a essa figura, e por mais que haja afetos e histórias em torno dessa relação de amor que se estabelece entre mãe e filhe, desde a gestação (em caso de maternidade biológica) até o observar a criança crescendo fora de si, é importante observar a reverberação desse texto nas mães que carregam seus filhos para todos os lugares, sendo abandonadas ao cargo exclusivo de cuidado e pressionadas pela sociedade a abdicar de sua singularidade.

Muitas e muitas narrativas oníricas, imaginárias e fantásticas são possíveis para gerar experiências sensíveis aos bebês; dando inclusive outras possibilidades de relação com as materialidades dos espaços e dos corpos. Pensando na própria pesquisa da criação de brinquedos que observam os estímulos das matérias, as relações corporais implicadas e os aprendizados disso por meio do vivenciar a coisa. Ao invés de recuperar memórias, a ação de criar memórias é um caminho para esse público.

E vivenciar, aprender, sentir não implica, necessariamente em silêncio. Talvez, tenhamos associado concentração à instauração do silêncio, no mundo adulto. Mas, isso não é um axioma. Os corpos produzem ruídos na experiência também, diálogos, expressões de riso, choro, angústia, medo, expectativa; geram sons ao mover-se, ao adaptar-se. Ainda mais quando os códigos sociais ainda não estão completamente formatados no corpo e a espontaneidade das reações imperam. O aviso que antecede ao espetáculo sobre a necessidade do silêncio para que a obra aconteça, institui uma norma em corpos tão pequenos e que ainda não tem controle de suas funções. E esse aviso recai sobre os acompanhantes que se responsabilizam ali, socialmente, pelas reações daquelas crianças. O público adentra o lugar teatral com certa tensão, receio de atrapalhar algo que parece tão frágil e sutil: a obra. Embora a obra teatral aconteça no espaço entre o público e o artista e não necessariamente, no palco sacralizado.

Crítica de "Casa" - por Diogo Spinelli

Sobre quietudes e inquietações

Crítica de Diogo Spinelli para Casa, do Grupo Teatral Porto Cênico (Itajaí/RS)




Enquanto aguardávamos na área interna da Casa de Cultura Dide Brandão, onde Casa, do Grupo Teatral Porto Cênico (Itajaí/SC), foi apresentado como parte da programação do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, a maior parte do público do espetáculo corria pelo pátio interno, saltitava, explorava os espaços, os sons – e um deles já havia até mesmo cortado o lábio nesse ínterim. O que ocorre é que o trabalho criado pelo coletivo itajaiense tem como público-alvo bebês de 0 a 3 anos de idade, e eram esses bebês e crianças, acompanhados por seus pais e (na maior parte) por suas mães, que compunham a fila de entrada para ver a obra.

Nela, as relações entre mãe e filhos na primeira infância constituem o eixo principal da dramaturgia, numa atmosfera que remete ao ato de contar histórias à cama como forma de embalar os sonhos dos pequenos, e a essa sensação, ou a esse momento do dia, nos quais não estamos nem totalmente dormindo, nem totalmente despertos. Esse ambiente é reforçado tanto pelos figurinos das duas atrizes em cena, que remetem a camisolas, quanto pelos próprios elementos de cena, dentre os quais se destaca o uso de lençóis, que se transformam em camas, oceanos, fantasmas, bebês... Esse ambiente noturno, propício ao compartilhamento de memórias e histórias (e talvez até alguns segredos) é retomado ainda pela dramaturgia, que repete em variados momentos a construção “Na minha casa, à noite”.

Ao contrário do que comumente associa-se às produções destinadas ao público infantil, Casa é uma obra que opta pelo pouco uso de cores em seus figurinos e adereços, cabendo à iluminação colori-los apenas em determinados momentos como forma de auxiliar na construção imagética sugerida pelas memórias das atrizes Valéria de Oliveira e Aline Barth. Do mesmo modo, as sonoridades propostas evocam um ambiente de delicadeza, e ao mesmo tempo, remetem ao universo cotidiano do público-alvo, com a utilização do som das águas e de canções que se assemelham a cantigas de ninar. Assim, em vez de expor as crianças a vários e excitantes estímulos, a obra parece buscar, como contraponto, um caminho que aposta na simplicidade e na quietude.

Foi interessante perceber como aquelas mesmas crianças que corriam e se agitavam do lado de fora do espaço cênico ficaram imersas na obra a partir dessa outra chave de comunicação proposta pelo trabalho. Não que essa imersão tenha significado assistir à obra imóveis e em silêncio. Ao contrário. O constante comentário sonoro produzido por esse público, que em um ambiente de teatro adulto seria considerado fora da norma ou até mesmo desrespeitoso, torna-se aqui parte constituinte do espetáculo.

Além disso, esse ato funciona, sobretudo, como um reflexo das apreensões do público-alvo sobre o que está sendo assistido e experienciado. Desse modo, choros, risos, balbucios de palavras – dentre as quais invariavelmente escapa um ou outro “mãe” – ecoam os temas e as situações que são apresentadas no palco, contribuindo inclusive na criação de ambiências sonoras para o trabalho. Nesse sentido, as orientações prévias dadas às mães e aos pais pela produção do espetáculo antes deste se iniciar, referentes à proposta da obra e a relação esperada entre esta e o público-mirim, soam demasiadamente disciplinadoras e pouco acolhedoras com relação às possíveis inquietações que poderão surgir nessa comunicação entre as crianças e o espetáculo, desconsiderando que é justamente através dessas intervenções que o diálogo entre essas duas instâncias se estabelece.

Ao ter como principal eixo dramatúrgico a figura materna, Casa parece destinar-se não apenas ao público da primeiríssima infância, fazendo com que seu discurso dialogue também com as mães que acompanham seus rebentos nessas que podem ser suas primeiras experiências com a linguagem teatral. Apesar do trabalho trazer uma versão romantizada e por vezes idealizada da maternidade – talvez por olhar para essa figura pelo filtro do passado –, pouco próxima das dificuldades e contradições cotidianas enfrentadas pelo público de mães (e pais) presentes na plateia, a narrativa do espetáculo possibilita que essa fatia do público revisite suas próprias lembranças de infância, ou ainda, reflita sobre que futuras memórias desejam construir no hoje junto a seus filhos e filhas.


sábado, 30 de julho de 2022

Crítica de "Proibido Acesso" - por Heloísa Sousa

PROIBIDO ACESSO

Karma Coletivo (SC)




[Entrando pelos fundos]


Qual o espaço do erotismo e da pornografia no teatro? Sabemos seu espaço na literatura, no cinema, na dança, nas artes plásticas (de onde a pornografia se origina, por sinal, em afrescos da Antiguidade com imagens de conteúdo sexual), na música também. E no teatro? Nessa dita arte do encontro, onde a cena acontece no aqui e agora, onde a proximidade entre os corpos público-artista é mais desafiadora, como a excitação tem espaço nisso? E quando reitero a questão sobre esse espaço é porque considero o erotismo uma camada relevante e forte nas subjetividades e que atravessam os modos como nos relacionamos no mundo. Lembro então de alguns artistas do teatro atuando em São Paulo, capital, que tem reapresentado essa tônica e marcado uma das possibilidades discursivas e estéticas da cena contemporânea brasileira. Carolina Bianchi quando fala de transar com o espaço na construção de algumas de suas obras, Janaína Leite com a mais recente peça “História do Olho – Um Conto de Fadas Noir-Pornô” (2022) junto com outras obras e experimentações derivadas de sua pesquisa sobre a pornografia como o “Camming 101 Noites” (2021) e os pornoshows, e ainda as criações do Teatro da PombaGira a partir do homoerotismo.

Trago, então, a obra “Proibido Acesso” do Karma Coletivo (SC) para dentro dessa listagem de montagens contemporâneas que centralizam essa discussão. Ao mesmo tempo que tenho dúvidas se o erotismo e a pornografia na arte entram, de fato, como temática e discussão, ou se, ao contrário, são muito mais um campo de experimentação. A aproximação entre o sexo e a ludicidade permite que a cena erótica adentre lugares de celebração, descoberta e prazeres cujos acessos nos são proibidos. O que acontece entre quatro paredes é excluído do campo social, por vezes até dos campos políticos, trazendo a intimidade para uma zona do não-dito, não-afirmado, embora absurdamente desejado coletivamente.

O Karma Coletivo é um grupo catarinense que já vem experimentando entre o teatro, a dança e a performance em sua trajetória, borrando essas fronteiras institucionalizadas entre as linguagens artísticas. Em “Proibido Acesso”, essa qualidade estética é explícita, há uma sobreposição de dança, de montagem de imagens, de recursos audiovisuais e de exposição de depoimentos que nos deixa diante de uma obra que muda seus contornos continuamente. Há uma escolha minimalista na coesão e quantidade dos elementos de cena; mas, a obra mostra como não é preciso recorrer à exagerada simplicidade de uma cadeira e um ator para instaurar uma imagem forte na cena. Entrar no Teatro Municipal de Itajaí e ver a primeira instalação já é o início da obra e já convoca uma percepção. Uma atitude muito simples do ator em cena, de parecer que está mascando um chiclete e sentar-se com uma abertura corporal, já estabelece um convite, uma oferta e um controle. É uma cena atenta aos detalhes das texturas, cores e pontos luminosos. A cenografia me faz lembrar de “MDLSX” da Cia. Motus (Itália) ao mesmo tempo que o uso da cor preta nos objetos, chão, figurinos e adereços me lembra as cenografias de Tadeuz Kantor (Polônia) e sua habilidade em criar perspectiva em cena com uma cor que tende a uniformização.

Acho que já escrevi isso em algum outro texto ao longo dessa experiência intensa de acompanhar parte da cena de Itajaí pelo Festival de Teatro Brasileiro Toni Cunha, o quanto alguns artistas dessa cidade tem uma habilidade e pensamento elaborado sobre cenografia e teatro de animação, conseguindo expansão e espacialidades complexas com poucos elementos de cena. Destaco, nesse sentido, tanto a cenografia de “Proibido Acesso” quanto a de “Rinha” e a de “Para Contar Estrelas”, ou ainda os objetos de cena e animação que aparecem em “Contestados” e “Papelê – Uma Aventura de Papel”. Reitero que esse é apenas um dos aspectos notáveis na cena de Itajaí apresentada neste ano de 2022 durante o festival. A precariedade dos recursos cenográficos parece ser quase sempre uma questão delicada para cidades que não são capitais e costumam não receber o mesmo orçamento para cultura que outras cidades maiores; embora seja a própria precariedade que faz o artista encontrar outros modos de criar sem despotencializar suas ideias, o que não deve ser tomado como solução ou romantização, mas que não deixa de ser um sintoma evidente.

Ao fundo de “Proibido Acesso”, uma projeção toma conta de quase toda a parede e apresenta uma sucessão de frases ou vídeos que se associam as outras imagens de cena, por vezes satirizando, por vezes contrapondo e por vezes replicando. Os vídeos que evidenciam o corpo do ator e suas relações de toque consigo mesmo, em ligeiras masturbações em looping com a própria boca, lembram os videoartes do Teatro das PombaGira. Se em alguns momentos os vídeos compõem sincronicamente com a cena, como a projeção de He-Man junto com a narração da foda feita pelo ator com voz distorcida; em outros, as cenas projetadas capturam a atenção de modo a quase nos dissociar da cena em si. Há uma hipnose da imagem.

A imagem é uma questão na obra. Existe uma dramaturgia dos signos em “Proibido Acesso”, onde algum objeto ou imagem trazido para o espaço parece abrir uma cadeia de significados no espectador que dispensam quaisquer outras narrativas, ações maiores ou algo que explique e destrua a imagem em autocelebração. E o que o signo pede é que ele tenha espaço para se instaurar, como no ato longo de banhar o corpo com óleo – uma ação apenas estendida e tomando o tempo necessário para se concluir – é esse mesmo tempo que permite que a imagem em si se construa e que outros sentidos, como o cheiro, se apresentem. E nesse ponto, temos o erótico como anunciação. Aquilo que contorna.

Mas, se a obra parece apostar nessas imagens e seguir para uma exploração da presença do ator em cena e o tempo estendido dos seus movimentos; por outro, parece trair seu próprio procedimento quando apresenta a narração sobre o que envolveu a criação da obra, buscando uma abordagem documental ou formalismo poético daquilo que é puro gozo e experiência. São as narrativas muito objetivas, limpas e documentais que retiram a excitação da cena e nos deixam a mercê de outros processos racionais não tão urgentes naquele momento.

Proibido Acesso” traz ao centro aquilo que está escondido no subterrâneo, os dark rooms dos nossos desejos, as práticas de bdsm e as fissuras entre risco e gozo. Ao mesmo tempo que enaltece o corpo do jovem, branco, homem com musculatura definida replicando as esculturas europeias renascentistas que mostram como nossa excitação está vinculada a uma cultura imagética padronizada e repetida. É uma peça íntima, não exatamente pessoal e muito menos com pretensões políticas de articulação coletiva; mas, íntima. E então, qual o espaço do erotismo, da pornografia e da intimidade no teatro? Qual o espaço da memória e imagem criadas ao bel prazer, mas não da ordem do deleite estético, mas da busca por o que pode [sentir] o corpo para subverter a máxima espinosana?

A linha curatorial da mostra local desse festival vai se delineando mais a cada apresentação que assistimos e poder observar a cena local por esse recorte tem sido uma das coisas que mais me instiga em eventos como esse. Percebo a recorrência de homens protagonistas no teatro adulto desse recorte, onde inclusive a sexualidade e as performances de gênero são as questões que tomam o centro. As mulheres atrizes aparecem nas montagens infantis e de animação, sem restrição etária do público. Nesse ponto, lembro então do texto de Audre Lorde, “Os usos do erótico e o erótico como poder” e deixo aqui o último parágrafo de seu texto, para também encerrar o meu, como provocação para o que virá.

Reconhecer o poder do erótico em nossas vidas pode nos dar a energia necessária pra fazer mudanças genuínas em nosso mundo, mais que meramente estabelecer uma mudança de personagens no mesmo drama tedioso. Pois não só tocamos nossa fonte mais profundamente criativa, mas fazemos o que é fêmeo e autoafirmativo frente a uma sociedade racista, patriarcal e anti-erótica” (LORDE).

Crítica de "Proibido Acesso" - por Diogo Spinelli

 


Desejos interditos.

Crítica de Diogo Spinelli para Proibido acesso, da Karma Coletivo de Artes Cênicas (Itajaí/SC)

Um forte componente erótico permeia toda a montagem de Proibido acesso, da Karma Coletivo de Artes Cênicas (Itajaí/SC). Esse campo de investigação, que atualmente tem movido diversos artistas da cena, já nos é apresentado desde a imagem inicial da obra: nela, o performer Leandro Cardoso está nu, sentado numa mesa ao centro do espaço cênico, ladeado por dois grandes ventiladores pretos e tendo ao fundo o nome da obra projetado em letras garrafais num tom de roxo neon. No som, batidas eletrônicas, ritmadas como os batimentos de um coração, evocam um imaginário sonoro que remete ao universo das raves, saunas, boates, dark rooms e outros ambientes de pegação gay. Não que isso esteja explícito às e aos espectadores. Ao menos, não nesse momento.

O que ocorre é que grande parte do discurso de Proibido acesso se dá no campo da sugestão e da subjetividade, sendo um trabalho que, no seu decorrer, se move entre o explícito e o implícito, entre a luz e a sombra, entre o dito e o não-dito. Nesse sentido, os elementos de cena – a música, as projeções, o figurino, e principalmente, a relação do performer com seu próprio corpo – são utilizados ao longo da montagem de forma a criarem uma narrativa imagética libidinosa e queer, permeada por referências – de São Sebastião a He-man – que dialogam com o imaginário sexual do público LGBTQIA+. Contrapondo esses elementos mais sugestivos, que insinuam mais do que revelam, a dramaturgia textual da obra evidencia as intenções da mesma, guiando de uma maneira mais diretiva as possibilidades de interpretação do que está sendo compartilhado.

Isso acontece, sobretudo, no momento em que o fluxo de imagens que compõem a parcela inicial da obra é interrompido por uma espécie de interlúdio, no qual o performer se dirige diretamente ao público. Nele, Leandro compartilha com as e os espectadores de maneira coloquial as aspirações iniciais da pesquisa – que partiu da investigação de práticas sociais e sexuais que desafia as ações que, com maior veemência desde 2018, procuram a aniquilação dos corpos desejantes – e aponta as implicações da pandemia no decorrer do processo de criação do espetáculo.

Esse texto, que pode ser lido na íntegra no programa da obra, situa o público na proposta do trabalho, mas ao fazê-lo, contrasta com o restante da montagem, mais calcada na potência subjetiva da teia imagética que vai se formando na fricção entre os elementos presentificados em cena pelo corpo do ator em diálogo com o material audiovisual desenvolvido por Hedra Rockenbach – que assina também o desenho de luz e a ambientação sonora da obra – que oras multiplica ou distorce a imagem e a voz do próprio performer, ora amplia o campo de referências presentes no trabalho.

Ao mesmo tempo, nesse jogo de claro e escuro proposto pela encenação, é a citação realizada nesse interlúdio sobre a relação da obra com a pandemia da Covid-19 que faz com que situemos o trabalho nesse contexto, e passemos a olhar para seus elementos a partir dessa chave de leitura.

A influência pandêmica se faz presente na obra em sua própria disposição espacial que, apesar de estilizada, remete aos espaços íntimos e confinados de nossas casas e apartamentos. Também é possível estabelecer essa relação quando, ainda no início do espetáculo, a primeira ação do performer consiste em besuntar/higienizar todo o seu corpo com uma substância não identificada, que pode ser lida tanto como um óleo de massagens ou um lubrificante, quanto como álcool em gel. Esse ritual de preparação, a um só tempo sensual e asséptico, gera uma ambiguidade presente também em outros momentos da encenação, nas quais a luxúria e o sacrifício, a dor e o prazer, aparecem sobrepostos ou combinados.

No segundo bloco do trabalho, pós-interlúdio, as dramaturgias textual e visual evocam encontros casuais e diferentes fetiches como bondage e pet play. Essas práticas parecem remeter a um momento histórico anterior, pré-pandêmico, presentes na memória corporal do ator, mas ainda impossibilitadas de serem realizadas no presente. Assim, durante Proibido acesso acompanhamos um corpo voluptuoso e energético, que pulsa, que almeja estar com outros, mas que se encontra limitado a realizar ritos de autoerotismo.

Tendo sua pesquisa iniciada no ano de 2019, Proibido acesso estreou apenas em novembro de 2021. Assistindo ao espetáculo, é instigante pensar sobre os impactos da pandemia da Covid-19 sobre nossos corpos e sobre a forma como nos relacionamos – ou fomos impedidos de nos relacionar – nesses diferentes momentos: até 2019; no auge da pandemia em 2020; no fim de 2021, data de estreia do trabalho; e agora, quase um ano depois. Ainda que não tenhamos regressado completamente à normalidade pré-pandêmica – eu mesmo sou um dos poucos que sigo usando máscaras em ambientes públicos, em uma luta que já considero perdida – me pergunto sobre o quanto nossos corpos continuam carregando daquela tragédia diária.

Aquele luto ainda limita nossos desejos?

Aquela memória ainda interfere em nossas ações?

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Crítica de "Rinha" - por Heloísa Sousa

RINHA

Grupo Risco de Teatro (SC)



[O problema do saco de pancadas é que ele não arrebenta]


A arte elabora, frequentemente, um espaço social alternativo onde pensamentos, práticas e corpos marginalizados são acolhidos e postos em comunhão. Como espaço próprio de experimentação estética e valorização do entendimento do mundo por outras vias menos racionais, dezenas de grupos feministas, negros, indígenas, lgbtqia+ se unem em torno da prática artística formando pequenas utopias de resistência aos sistemas que cerceiam as individualidades e suas formas variadas de estar no mundo. A arte também, frequentemente, ameaça o pensamento vigente que sustenta as realidades opressoras quando expõe seus mecanismos e exibe cenas que subvertem a as fronteiras dos imaginários que nos são impostos. Embora, paradoxalmente, sendo também uma prática social e humana, ela revela a reprodução das formas sociais em massa em seus próprios processos criativos e palcos, sendo então, autocriticada por si mesma na sua estruturação.

O livro “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade” (1990) de Judith Butler talvez tenha sido um dos livros que mais me atravessou nos estudos sobre gênero, seja pela construção do pensamento da autora sobre a performance de gênero, seja pela sua habilidade em articular diversas teorias de outras feministas para construir a questão do seu livro. Apesar da leitura complexa e nada fácil, sempre penso como seria fundamental que homens estivessem fazendo essa leitura como muitas mulheres e outras identidades de gênero vem fazendo.

Ao citar a escritora e téorica Monique Wittig, a autora do livro pontua que:

Para Wittig, a restrição binária que pesa sobre o sexo atende aos objetivos reprodutivos de um sistema de heterossexualidade compulsória; ela afirma, ocasionalmente, que a derrubada da heterossexualidade compulsória irá inaugurar um verdadeiro humanismo da ‘pessoa’, livre dos grilhões do sexo. [...] Em outras palavras, só os homens são ‘pessoas’ e não existe outro gênero senão o feminino: ‘o gênero é o índice linguístico da oposição política entre os sexos. E gênero é usado aqui no singular porque sem dúvida não há dois gêneros. Há somente um: o feminino, o ‘masculino’ não sendo um gênero. Pois o masculino não é o masculino, mas o geral’”. (BUTLER, 1990).

O masculino tendo se construído como o geral ou o universal se percebe como não sendo passível de crítica, todos os outros corpos e sujeitos fora do reconhecimento padrão de um homem-cis-hetero-branco acaba sendo o outro e recorre aos estudos e práticas de agrupamento para pensar e agir modos de não interdição de sua individualidade e de resistência ao sistema. É por isso, que os estudos de gênero possuem tantas teóricas mulheres e delineiam o feminismo como grande espaço de articulação dos infinitos pensamentos sobre as opressões e hierarquias de gênero que sustentam a sociedade patriarcal.

Do outro lado, a masculinidade não se pensa, os homens costumam não ver a si mesmos na mesma lógica da performance de gênero que compreendemos e pretendem-se naturais e orgânicos em suas formas de pensar e agir no mundo. Reiterando violências como sendo intrínsecas a si, consequência biológica do gênero com o qual foram categorizados a partir da genitália identificada quando bebês.

É também por isso que vemos tantas produções artísticas sobre feminismo e as diversas identidades de gênero, mas pouca produção debruçada sobre a performance da masculinidade, suas violências e toxicidades agregadas. Na memória, lembro do documentário “The Mask You Live In” (2015), dirigido por Jennifer Newson (!!!) e que expõe as consequências emocionais das narrativas também impostas aos homens sobre como devem se portar no mundo para serem identificados nos seus gêneros. E eu nem sei se esse documentário foi visto por tantos homens quanto foi visto por outras mulheres.

O projeto do Grupo Risco de Teatro (SC) em criar uma obra teatral que trate sobre a masculinidade tóxica, coloca em cena dois atores – Rafael Orsi e Rodolfo Lemos – dirigido por Renato Turnes (Cia. La Vaca), que elaboram juntos uma dramaturgia que centraliza a figura masculina para expor seu percurso de construção social e suas contradições. É um projeto que não é comum. A cena costuma trazer protagonismo para as outras identidades de gênero marginalizadas, reiterando suas narrativas e singularidades, colocando o opressor como um outro que sustenta a violência, quase em um jogo inverso ao modo como a sociedade estrutura os sujeitos. Em “Rinha” esse outro retorna ao centro, mas não apenas como afirmação inquestionável de suas ficções, mas como depoimento passível de provocações até por si mesmo.

Impossível não lembrar também dos livros da pesquisadora norte-americana bell hooks que convida os homens ao processo de autorreflexão sobre as construções em torno do gênero e suas afetividades, para que possamos vislumbrar a possibilidade de não vivermos em uma eterna trincheira binária.

O Grupo Risco opta, então, por trazer a discussão da masculinidade tóxica, tomando a questão da violência e da agressividade como marcadores do estereótipo masculino. Interessante observar o convite a Renato Turner, um artista gay mais velho, para dirigir dois atores jovens performando uma masculinidade tão estruturada e explícita. É esse encontro certeiro que parece trazer uma tensão ao próprio processo criativo, que sustenta inclusive a sensibilidade da obra mesmo nessa temática, talvez justamente pelo antagonismo da relação instituída. Quando apresento essa tensão, não digo de eventuais conflitos pessoais em um processo de criação, mas de pôr juntos a criar corpos que representam também algum antagonismo social. Para que o discurso não recaia num artificialismo e exposição cínica de um pensamento já construído, mas que não reverbera, de fato, nos corpos criadores. Sempre me questiono sobre a diversidade de pessoas na ficha técnica, com quem se trabalhou e quais posições esses indivíduos ocupam nessa listagem. Estar disposto a viver a tensão no processo, essa microesfera social e política, para radicalizar efetivamente a experiência de criação.

A estratégia de encenação de Renato Turner se repete em relação a “Homens Pink”, outra encenação dirigida por ele e que também integra a programação desta edição do Festival de Teatro Brasileiro Toni Cunha. O grupo se propôs a realizar uma sequência de entrevistas com outros homens a respeito da temática, para construir uma dramaturgia a partir de seus depoimentos. Com essa recorrência, Renato parece instaurar, como diretor de teatro, um procedimento pontual de teatro de pesquisa.

No entanto, se a obra tem esse procedimento de levantamento documental, na criação da encenação ela dá uma guinada ao apresentar certa ficção em cena a partir das narrativas recolhidas. Esse flerte entre o teatro documental e a ficção é interessante quando permite o reposicionamento da teatralidade. Essa ficção sendo sempre apresentada com certa dubiedade e a troca entre a primeira e a terceira pessoa na linguagem verbal, não nos dando a certeza se se trata da história do ator ou de outras pessoas, ou de uma mistura entre elas. Essa incerteza não precariza a obra, mas instaura um eco de identificação, essa narrativa pode estar em vários corpos para além de uma personagem.

Mas, se em “Homens Pink” a encenação concentra-se no corpo do ator, em “Rinha”, a direção expande o pensamento teatral e apresenta uma encenação com uma camada minimalista, mas com forte potência de composição. Os objetos de cena são poucos, mas suficientes para instaurar um espaço cênico do ringue, do treino e do enfrentamento, além das posições que os atores ocupam no espaço explorando centralidade, diagonais e outras linhas, em exemplos explícitos de uma dramaturgia do espaço, apoiada pelos contornos dados pela iluminação para as imagens. Pelo movimento dos corpos, o espaço se instaura, se expande, se contrai, e até cerca o público quando os atores iniciam e encerram a peça correndo ao nosso redor.

Em uma conversa pós-apresentação, tomamos conhecimento de que os atores aprenderam boxe durante os seis meses de processo criativo para trazer as figuras em cena, aos moldes dos processos em cinema. E é muito interessante perceber a presença cênica sustentada por uma coreografia de gestos tão rígidos e que servem a agressão.

Transitando entre personagens e narrador, eles nos contam a história de um garoto que presenciava violência doméstica de seu pai contra sua mãe e era educado a partir dessa mesma prática. Ser agressivo é algo que vai sendo construído no corpo daquela criança desde cedo. Ele necessita violentar/bater para se afirmar no mundo; não é apenas uma defesa ou estratégia de proteção do corpo, mas instauração de um ego. Conseguir estender o fio narrativo que contempla a vida da personagem, desde sua infância até a fase adulta na unidade de tempo de uma peça de teatro é notável.

Retomo Butler (1990) ao dizer que: “A crítica genealógica recusa-se a buscar as origens do gênero, a verdade íntima do desejo feminino, uma identidade sexual genuína ou autêntica que a repressão impede de ver; em vez disso, ela investiga as apostas políticas, designando como origem e causa categorias de identidade que, na verdade, são efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos”.

Se Butler diz essa frase para falar sobre o feminino, ela tem a mesma validade pra lidar com o masculino. E é esse movimento que o Grupo Risco faz, ao recusar a ideia de naturalidade das performances reiteradas pelos homens, para apresentá-la como derivada de um percurso de aprendizagem e repetições que determinam o sujeito e o torna efeito desse discurso.

O mais interessante são as problematizações que a dramaturgia traz sobre a figura em cena. A personagem que narra suas sucessivas brigas e agressões com detalhes espetacularizados, é a mesma que não se percebe violenta porque não chega a matar. Existe uma ética que esse corpo busca sustentar e que expõe suas próprias contradições, mas também uma busca de se integrar socialmente mesmo nessas repetições violentas e que ameaçam o próprio corpo social. O que parece automatismo não é completamente livre de consciência ou de elaboração individual. Ou ainda, ao expor sua angústia quando a filha diz que não precisa dele, desafiando o papel social onde ele baseia a construção do seu ego.

E uma das questões mais potentes a ser apresentada na obra é sobre a expectativa do alívio, de que algo irá escapar ou fazer escoar a tensão retida no corpo. Mas, o alívio não vem. E ainda assim, ele repete o seu caminho de busca. Nesse ponto, a relação entre dor e gozo é fundamental, e pano para muitas discussões psicanalíticas. O prazer elaborado aos moldes de Clube da Luta, obra cinematográfica de David Fincher. O sangue que escorre na mão rígida é espelho da imagem do esperma que jorra do pau duro. Nessa ação, o medo é sublimado, e uma “boa briga é como uma boa foda”.

E então, percebo o alívio que eu sinto, enquanto espectadora de ver a exposição do processo de composição dessa narrativa violenta no corpo dos atores e pelos próprios atores. Autoconsciência das ações repetitivas que nos compõem e de que como elas surgem na gente. Não que a obra ou o meu alívio sejam suficientes para transformar qualquer estrutura ou ainda comportamentos do público ou dos próprios artistas envolvidos na criação; mas, permite que a experiência cênica esboce algum tipo de vínculo ou pacto de comprometimento com a desarticulação desse rígido sistema que ameaça a existência do meu próprio corpo, por exemplo. E esse alívio nem é tão comum a outros espectadores, já que os atores precisam ultrapassar a afeto negativo já instaurado em relação à masculinidade para que alguma escuta seja efetivada; não á toa, os poucos momentos de falas que poderiam gerar o riso, apenas deixam pairar o silêncio intenso do público. Não há conforto diante daquelas figuras para que algum sorriso aconteça.

As imagens da encenação não são coadjuvantes e nem inocentes na composição entre a luz, a dramaturgia do espaço e as coreografias dos corpos de dois homens com silhuetas grandes e onde reconhecemos uma masculinidade facilmente (associando inclusive ao medo, a submissão, ao tóxico). Os golpes duros se organizam como uma dança. A respiração ofegante torna-se sonoridade. A associação animalesca é complementada pelas focinheiras, readaptadas aqui como máscaras, elemento recorrente em figuras masculinas icônicas violentas, sádicas e loucas do mundo do cinema como o vilão Bane, o protagonista de “Mad Max” ou o psicopata Hannibal.

Os búfalos projetados ao fundo também lembram o roteiro de Guillermo Arriaga para “Amores Brutos”, onde as narrativas de três homens se cruzam e cenas de rinhas de cachorros simbolizam a violência dos próprios personagens. Ao final, ouvimos Hurt com a voz grave de Johnny Cash. Me pergunto se quase nunca há equivalentes na música brasileira para os sentimentos e discursos que queremos evocar numa cena, para que não tenhamos que recorrer sempre a músicas em outros idiomas que limitam o entendimento de algumas pessoas da plateia. Inclusive, se você assistiu “Rinha”, sugiro que escute atentamente a letra dessa música final que atravessa bem a experiência de recepção. Lembro então, de Cash cantando “Folsom Prison Blues” para presidiários nos EUA.


When I was just a baby / Quando eu era apenas um bebê

My mama told me, son / Minha mãe me disse, filho

Always be a good boy / Seja sempre um bom garoto

Don’t never play with guns / Nunca brinque com armas

But I shot a man in Reno / Mas, eu atirei em um homem em Reno

Just to watch him die / Apenas para vê-lo morrer

When I hear the whistle blowing / E quando eu escuto o apito

I hang my head and cry... / Eu seguro minha cabeça e choro...


Rinha” também poderia circular por esses espaços, ou quaisquer outros onde homens fossem a plateia majoritária. “Rinha” precisa circular por esses espaços, por esse público. Tem uma potência autorreflexiva na obra, por um grupo que costuma não se autorrefletir, e que é assumido como projeto pelo Grupo Risco e que não pode ser colocada de escanteio.

Crítica de "Rinha" - por Diogo Spinelli

Sangue, porra, sangue nas mãos.

Crítica de Diogo Spinelli para Rinha do Grupo Risco de Teatro (Itajaí/SC)


Respirações.

Respirações ofegantes.

Demonstrações de força e virilidade.

Demarcações de território.

Algo ronda a arena onde se dará o embate de Rinha, do Grupo Risco de Teatro, de Itajaí (SC), antes mesmo deste começar. Algo animalesco está à espreita. Algo que incomoda e intimida. Algo que espera a hora certa pra atacar.



***


Leões, ursos, búfalos.

Primatas.

Em todo o reino animal não é raro encontrar exemplos de espécies cuja função principal dos machos seja a de proteger seu clã.

Não de predadores.

Não.

De protegê-los contra a ameaça do domínio de outros machos.

Macho contra macho.

Quando um confronto desses ocorre, o que está em jogo não é a segurança do grupo, mas a do próprio alfa em manter sua posição de poder.

Toda luta entre machos é na verdade uma tentativa de autopreservação.



***



Criado a partir de entrevistas com dois lutadores, Rinha performa a bestialidade da masculinidade tóxica expondo-a com crueza. Na cena, convertida em ringue de boxe, Rafael Orsi de Melo e Rodolfo Lemos revezam-se entre assumir as figuras desses lutadores e a comentá-las, num constante movimento de entrar e sair dessas personagens, mas sem que as passagens entre essas duas instâncias sejam fortemente demarcadas do ponto de vista do registro de interpretação. É a alternância no discurso entre a primeira e a terceira pessoa a responsável por traçar a divisão.

A dramaturgia pautada no revezamento entre um eu e um ou mais eles revela a filiação do processo de criação ao de Homens Pink – Rinha tem a direção do ator e diretor Renato Turnes, da Cia. La Vaca – ainda que aqui, o mesmo procedimento documental de realização de entrevistas evidencie o relato de eles bastante distintos em relação aos eles da obra florianopolitana.

A fisicalidade da obra, que tem como base os movimentos de boxe, faz com que a violência trazida nos relatos seja presentificada em cena, vivenciada nos corpos dos atores, exigindo destes um refinado controle corporal e vocal. Se em determinados momentos o texto é impulsionado pelo esforço físico gerado pelos socos desferidos pelos atores entre si ou em um saco de pancadas, em outros há uma dissociação entre esses elementos, conservando-se uma naturalidade no tom de voz, apesar das condições físicas inóspitas. Deriva dos murros uma musicalidade que também contribui para pontuar a narrativa, auxiliando a construir no campo sonoro a atmosfera de agressividade que permeia o trabalho de seu início até o fim.

A tensão instaurada pelos sons de respiração e pelas movimentações dos atores ao redor da área cênica durante a entrada do público – que retornarão ao fim do espetáculo, indicando uma ação cíclica sem resolução – se mantem durante toda a duração da obra, sem que haja nenhum momento de alívio possível, dada a densidade da temática trabalhada. Movidos por sentimento semelhante ao que ocorre quando diminuímos a velocidade para observar um acidente de trânsito, misto de repulsa e fascinação, seguimos observando atentamente àquela briga de galos. A violência nos paralisa. Não nos esquivamos diante dos jabs, dos ganchos, dos cruzados. De certa forma, Rinha também nos violenta.

A sequência de situações relatadas durante o espetáculo apresenta o universo dos entrevistados – seus contextos familiares, suas justificativas para as brigas, sua ética da brutalidade – sem humanizá-los ou criticá-los em demasia. Cabe a nós, como público, a tarefa de posicionar-se frente a esse círculo vicioso de ignorância e opressão.

Ainda que as e os espectadores não possuam experiências pessoais aproximadas às retratadas no trabalho, impossível não pensar de que modo essa lógica de destruição e violência nos afeta em vários aspectos do nosso cotidiano e do nosso estar no mundo – e o quanto dela carregamos em nós mesmos, sem que às vezes percebamos. Abordar essas questões em cena e repensar os lugares de masculinidade no mundo são projetos urgentes e iniciativas como essa, corajosas.

Rinha é um soco no estômago.

Nada agradável de se tomar.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Crítica de "Homens Pink" - por Heloísa Sousa

HOMENS PINK

Cia. La Vaca (SC)



[Bichas de outrora sobrevivem]

Em “Homens Pink”, da Cia. La Vaca (SC), projeto contemplado com o Rumos Itaú Cultural, o ator e diretor Renato Turnes cria uma peça teatral a partir dos depoimentos de alguns homens gays mais velhos. Aqueles nomeados em outros tempos como mariconas, cujo recorte temporal em seus corpos revelam outros modos de lidar com as subjetividades, a sexualidade a partir das interdições contextuais. Com a contínua marginalização dos corpos LGBTQIA+, que na realidade compreende uma maioria social; a sobrevivência frente às violências, expulsões, discriminações e assassinatos sistematizados torna-se uma conquista a ser celebrada. As memórias desses homens que já passaram da metade dos anos da expectativa de vida comum nos apresentam corpos que também são documentos vivos de lutas e revoluções que culminaram nas conquistas possíveis na atualidade. Quantos não tiveram que morrer antes para que outros possam viver hoje? Trazer essas memórias ao centro revela um movimento de pesquisa consistente e pertinente da Cia. La Vaca que culmina não apenas na obra teatral apresentada nesta edição do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, mas também em um documentário e um vídeo-performance. É uma obra constelativa, cuja densidade da pesquisa faz os artistas reunirem tanto material urgente que ele se ramifica em múltiplas formas de apresentação.

Acompanhando a programação do Festival, percebo que estamos novamente diante da temática LGBTQIA+, como já tinha sido visto em “Amar é Crime” de Jônata Gonçalves (SC), inclusive com uma organização cênica que apresenta semelhanças entre as duas obras. Vivenciar festivais e mostras locais é também interessante para perceber as recorrências que se revelam; a curadoria já começa a delinear aos espectadores alguns traços evidentes de conexão entre as obras e talvez, a percepção de que a própria produção artística contemporânea da cidade tem se debruçado sobre certos interesses temáticos e estéticos. Esse movimento é sempre fluido e nos coloca também diante das urgências das cidades, seja dos artistas frente ao contexto, seja do próprio público e suas ânsias, seja do confronto entre os dois.

A peça nos faz lembrar da estrutura do stand-up comedy, que cito aqui como forma cênica caracterizada por ser um espetáculo de humor apresentado por apenas uma pessoa. A escolha por um monólogo, recai aqui em um ator que transita entre narrador e personagem, confundindo ainda suas histórias com os depoimentos coletados, estratégia que revela uma reverberação da pesquisa no corpo do ator como sujeito no mundo. Diz dos entrevistados, diz do ator e pode dizer de muitos espectadores também, há uma busca por gerar identificações em rede. Ver a si mesmo em cena, e vivo.

A consequência dessa escolha acaba recaindo em pouca elaboração de encenação nos colocando diante de uma imagem de cena comum ao teatro, um ator no centro protagonista, uma cadeira como único objeto, algumas trocas de figurino e uma projeção ao fundo como paisagem. A temática e os depoimentos são tão relevantes e inéditos que parecem tomar conta de toda a criação da obra que a experiência cênica em si fica em segundo plano.

Associo com a forma do stand-up comedy pela apresentação de uma dramaturgia onde a comicidade é recorrente e o riso do público permeia boa parte da duração da obra. Se por um lado, isso traz leveza a uma temática de resistência de vida de figuras marginalizadas, além de corroborar com a aura festiva e de celebração desse universo, por outro, traz dúvida sobre os modos de satirização consigo mesmo. Torna-se evidente um olhar que cobra pela beleza e jovialidade, que rejeita a ação dos anos sobre o corpo, apresenta o medo do descarte e de não ser mais sujeito do desejo alheio; o entendimento sobre a orientação sexual afirmada ainda reiterada em uma performance de gênero para os corpos afeminados, experimentação de aparências desobedientes. Se o discurso da obra parece datado em algumas abordagens é justamente por centralizar o pensamento de um recorte temporal que traz à tona a discussão do etarismo entre os gays. A pauta transita entre a emergência e o anacronismo ainda mais em uma sociedade que descarta memória e corpos mais velhos entendendo-os como improdutivos. No documentário também dirigido por Renato Turnes, um dos entrevistados fala de um tempo em que certas palavras ainda não existiam, a sigla que hoje se expande um dia ainda foi restrita ao gls, bichas e travestis se confundiam em uma sociedade que recusava (e ainda insiste na recusa) a existência dessas pessoas. Mas, é justamente a observação dessa passagem temporal, dessa trajetória de transformações do pensamento e reconhecimento da diversidade em profusão que “Homens Pink” torna evidente.



Crítica de "Homens Pink" - Por Diogo Spinelli

 


Entendidos, entenderão

Crítica de Diogo Spinelli para Homens Pink da La Vaca Cia de Artes Cênicas (Florianópolis/SC)


Correndo o risco dessa percepção ser fruto do meu olhar colonizado, me parece que em outros países, sobretudo nos EUA, há na comunidade LGBTQIA+ um maior respeito e admiração pelos chamados trailblazers, pessoas que estiveram presentes em eventos decisivos para o avanço na conquista de direitos e de visibilidade, como no caso emblemático da Rebelião de Stonewall – pedra angular das paradas do orgulho LGBTQIA+ ao redor do mundo.

Apesar de sermos o país que abriga a maior delas, pouco se sabe e se fala sobre as e os ativistas que viveram e lutaram para que chegássemos até aqui. A obra Homens Pink, da Cia. La Vaca de Florianópolis (SC), preenche parte dessa lacuna, ao homenagear e celebrar essa geração de pioneiros, trazendo para o palco suas memórias e com elas, parte da história do próprio movimento e da cena LGBTQIA+ no Brasil.

Importante salientar que, apesar desse movimento ter sido construído a muitas e diversas mãos, o recorte de entrevistados feito na pesquisa que originou a obra abarca apenas um segmento muito específico dentre esses pioneiros, pioneiras e pioneires: aquele correspondente a homens cisgêneros homossexuais, em sua maior parte brancos, e moradores de grandes centros urbanos do sul e sudeste do país. É a partir desses marcadores sociais que podemos ler as memórias que nos são compartilhadas e presentificadas em cena por Renato Turnes, que empresta seu corpo e sua voz para que desfilem diante de nós as vivências de uma porção de bichas sexagenárias.

A apropriação do termo bicha, utilizado no espetáculo e neste texto como palavra afirmativa, me fez recordar de Bichas – o documentário, de Marlon Parente, disponível na íntegra no canal de YouTube dedicado ao filme. O documentário, lançado em 2016, colhe os depoimentos de seis jovens gays nordestinos na casa dos seus 20 anos de idade, sendo instigante acompanhar o diálogo traçado entre eles e aqueles retratados em Homens Pink. Onde avançamos, onde empacamos? O que significa ser bicha hoje e o que significava há quarenta anos atrás? O que é ser bicha no nordeste ou no sul do país?

Partindo do que parece ser um relato autobiográfico na cena que abre o espetáculo, Renato Turnes apresenta sua própria história e suas fotos de infância para logo em seguida abrir espaço para que comece a ser construído um mosaico de arquivos pessoais dos nove homens entrevistados durante o processo de criação da obra. Essas imagens, projetadas no fundo do espaço cênico em vários momentos da encenação, ora servem como ilustração documental do que está sendo narrado pelo ator, ora ajudam a compor com maior amplidão e diversidade o retrato da cena LGBTQIA+ de toda uma geração, compreendida entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1990.

Ideia semelhante de multiplicidade ocorre na cena na qual o ator, acompanhado por uma música ritmada que poderia ser facilmente utilizada para uma performance de bate-cabelo, aguça nossa imaginação para que visualizemos várias bichas em diferentes situações, compondo um quadro que me faz recordar do slogan We’re here, we’re queer, get used to it! – estamos aqui, somos queer, acostume-se com isso.

Em procedimento próximo ao da metodologia da mímesis corpórea desenvolvida pelo Lume Teatro – em mais um diálogo possível a ser trançado entre as obras presentas na programação do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha – Renato Turnes conta as histórias de vários eles, convertendo-se nos donos de cada memória à medida em que essas vão sendo narradas. O figurino, composto parcialmente por peças do acervo dos entrevistados durante o processo de criação da obra, apesar de sintético, auxilia o ator a criar corporeidades e visualidades distintas, que passeiam pela androginia e contribuem para indicar a presença de cada nova personagem. O trabalho com a projeção mapeada, que oras recorta o palco, oras invade-o por completo, cria novas paisagens e atmosferas, dinamiza a área cênica ocupada apenas pelo ator, uma cadeira e um microfone.

Entre histórias de ferveção e relatos sobre a tragédia da AIDS, que atingiu de forma especialmente dura a essa geração, Renato consegue transitar entre momentos cômicos e densos com bastante desenvoltura. Aliás, o riso ou o risível, quando ocorrem na obra, não são fruto do deboche, como comumente vemos ocorrer quando se trata da representação de homens gays afeminados de certa faixa etária. No caso de Homens Pink o riso – pelo menos da parcela homossexual masculina da plateia – parece surgir mais a partir da chave do reconhecimento: não apenas por identificar aquelas figuras dentro da comunidade, mas por reconhecer-se e projetar-se nelas. Afinal, depois de certa idade, percebemos que não há outro caminho possível para um homem gay que não seja converte-se futuramente em maricona.

Se a questão do etarismo se faz presente na sociedade como um todo, dentro do meio LGBTQIA+ ela parece atuar com força ainda maior, fazendo com que exista inclusive um sentimento de autodepreciação que não deveria acompanhar quem justamente lutou tanto para ter o orgulho como bandeira. Se já conseguimos nos apropriar da palavra bicha, talvez nosso próximo passo como comunidade seja fazer o mesmo com o termo maricona. E que possamos cada vez mais festejar nossas bichisses maduras e aqueles que vieram antes de nós, como ocorre em todo o espetáculo, mas, sobretudo, no segmento final que encerra Homens Pink.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Crítica de "Contestados" - por Heloísa Sousa

CONTESTADOS

Cia. Mútua (SC)


[Terra e Pertencimento]

O primeiro homem que inventou de cercar uma parcela de terra e dizer, ‘isto é meu’, [...] foi o autêntico fundador da sociedade civil. De quantos crimes, guerras, assassínios, desgraças e horrores teria livrado a humanidade se aquele, arrancando as cercas, tivesse gritado: ‘Não, impostor’”. (Jean-Jacques Rousseau).

Essa é uma frase dita nas primeiras cenas de “Estudo No. 1 Morte e Vida” do Grupo Magiluth (PE) e que abre a programação desta edição do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha.

A organização da sociedade em uma estrutura capitalista reforça a conquista e acúmulo de propriedades privadas como meta, desejo e sinal de liberdade, o que fundamenta uma série de desigualdades sociais, privação de direitos humanos básicos e exploração de recursos naturais. Karl Marx elabora toda uma teoria crítica a essa estrutura, seguido de muitos outros sociólogos e teóricos políticos que nos apontam as problemáticas do liberalismo. Não à toa, “comunista” torna-se xingamento antigo em nosso país para todo aquele que questione a lógica predatória capitalista.

A quem pertence a terra? E a que terra pertencemos?

Esse jogo discursivo da terra como propriedade e como identificação inicia o espetáculo “Contestados” da Cia. Mútua (SC) apresentado durante o mesmo festival.

De onde você é? Isso significa onde eu nasci, onde eu moro, onde eu vivi maior parte do tempo, para onde eu voltei ou o lugar com o qual me identifico afetivamente? Quais sinais culturais grafados no seu corpo e o que eles revelam? O que é ser catarinense? O que é ser potiguar? O que é ser brasileiro?

O que é ser brasileiro nesse país chamado Brasil, uma ficção por si só, uma ferida colonial? A Pindorama sequestrada.

A Cia. Mútua, conhecida por seu trabalho com teatro de animação desde 1993, em Santa Catarina, apresenta um recorte histórico sobre a Região do Contestado no meio-oeste catarinense, mas que reapresenta uma recorrência de disputas e tomadas de terra que persistem no país até hoje. Usando o recurso do teatro de figuras planas, aos moldes do antigo teatro de papel, duas atrizes narram a história da região usando uma mesa repleta de quilos de terra, recursos cênicos direcionados a este espaço suspenso e várias figuras pintadas e recortadas em mdf. A tradição que alguns grupos em Santa Catarina parecem ter com o teatro de animação é algo destacável no cenário artístico nacional, a recorrência no trabalho com esse recurso cria um campo de pesquisa e experimentação aguçados. Há um apuramento técnico admirável envolvido na composição da mise-en-scene e na precisão coreográfica das atrizes para a manipulação de todas as figuras, movimentação fundamental para que se materialize a dramaturgia e o ritmo do espetáculo. Nessa operação não há muito espaço para o erro, o improviso ou imprecisões, porque são os braços das atrizes que constroem toda a paisagem em cena. Dialogar com Guilherme Peixoto, um dos integrantes do grupo, ao final do espetáculo pareceu essencial para fechar o ciclo da experiência da obra. A curiosidade fica latente pelo avesso daquela cena, seus modos de produção; subo ao palco quando não há mais público para observar de perto aquela cenografia, alguns minutos depois, outros artistas do teatro chegam junto para ouvir as explanações de Guilherme. Ele nos explica sobre a pesquisa do grupo, as visitas que fizeram à Região do Contestado, e como o grupo se compromete em contar essa história para que ela não seja apagada. Ele fala que essa foi uma das únicas revoltas brasileiras que se inicia após a morte de seus líderes e assemelha o conflito à Guerra do Vietnã pelas cenas de violência. Isso em um país onde somos convencidos, desde a escola, da narrativa de que não houve e nem há guerras por aqui, embora o Brasil tenha se fundado em cima em um dos maiores genocídios do mundo.

A narrativa nos é apresentada pelo grupo. Entre 1912 e 1916, naquelas terras viviam caboclos com suas rotinas e produções. Até que elas são vendidas pelo governo brasileiro, na época da presidência de Marechal Deodoro da Fonseca, para um empresário norte-americano que constrói uma ferrovia na região e desapropria várias famílias. As pessoas retiradas de suas terras se revoltam, se reorganizam e iniciam conflitos pela retomada da posse. Esses conflitos são combatidos pela força do exército militar que entra em campo na defesa dos direitos privados do grande empresário e passam a matar os que se revoltarem, inclusive queimando seus corpos. A disputa se segue com frequentes assassinatos autorizados pelo governo enquanto os povos desapropriados se reúnem influenciados também por narrativas religiosas que os faziam acreditar na relação sagrada entre seu povo e as terras. Qualquer semelhança com a realidade atual não é mera coincidência. Desde os colonizadores, até a estruturação do exército brasileiro e da posterior polícia militar, temos um grupo organizado e financiado pelo próprio governo para combater violentamente a própria população. A militarização que o país sofre com a ascensão do governo de direita ao poder reitera todas as violências contra as quais os movimentos sociais lutam frequentemente.

Quando a figura do monge surge na dramaturgia contada, impossível não lembrar de Antônio Conselheiro, líder religioso e figura emblemática na Guerra de Canudos, conflito onde, mais uma vez, o Exército Brasileiro se coloca contra a população marginalizada pelo próprio país.

Mas, a história não pode ser vista com olhos inocentes, os projetos políticos estruturam muito mais do que um jogo de afetos e em um efeito espiralar, estamos revivendo as mesmas mazelas não resolvidas continuamente. Como essa rede de complexidade e contradições podem permear a contação de uma história como essa no teatro? O direito ao mínimo de terra como princípio básico não instaura uma completa autonomia dos indivíduos e liberdade para exercer suas singularidades, portanto, retratar situações “felizes” como sinônimo de ausência de conflito ou na constituição de famílias esconde a dialética da realidade. Iniciar a história a partir de uma mestiçagem aceita e instituída, afirmando que ali havia caboclos com suas terras e famílias “felizes”, nos faz pensar “de onde eles vieram?”. Brasil é terra indígena por direito, tendo sido colonizada, a dizimação dos povos indígenas se deu também pelos processos de embranquecimento e desapropriação cultural dos sujeitos. O próprio núcleo familiar e uma violenta procriação tornam-se base para uma colonização dos corpos, fazendo surgir aqui um outro povo já marcado por uma aniquilação. Então, esse antes, que por vezes é também ignorado na história, já revela os passos que se seguiram e se repetem.

A expropriação não é um fato pontual na história do país, é um projeto sistemático de eliminação de comunidades e marginalização. Não há, novamente, como não lembrar das sucessivas desapropriações na cidade de São Paulo, onde comunidades inteiras sem moradia ocupam prédios privados abandonadas, há mais imóveis desabitados do que gente em situação de rua – mais casa sem gente do que gente sem casa – populações ribeirinhas são retiradas de suas moradas para dar lugar a imensas construções, muitas vezes, contraditoriamente, construções de prédios públicos. Favelas que se organizam nas margens das cidades, com estruturas precárias e que radicalizam a paisagem desigual e materializam um espelho do processo de segregação social e racial que esse país insiste. Ainda em São Paulo, a Cracolândia, um grupo de quase duas mil pessoas em situação de rua que se estabeleceram no centro da cidade, tem sido alvo de ataques constantes da polícia (a mando do governo estadual e municipal) que buscam desintegrar o grupo em uma tentativa surreal e violenta de que esses corpos apenas desapareçam, se desmanche no ar. A desapropriação e dizimação como citada em “Contestados” é projeto político recorrente no país e suas implicações precisam também ser contestadas em cena e fora dela.

Mesmo com uma abordagem dramatúrgica que poderia contemplar mais radicalmente os atravessamentos que a narração do fato histórico suscita no seu próprio passado e no momento presente; a pesquisa e o projeto da Cia. Mútua em trazer para a cena essas histórias apagadas e construindo ainda uma outra sequência imagética para materializar esse percurso, é uma ação que não deve ser abandonada, mas notada com mais atenção e interesse; inclusive dando mais espaço ao teatro de animação e suas formas de reapresentação do mundo em circuitos e festivais de teatro pelo país.

Crítica de "Contestados" - por Diogo Spinelli


 

Desenterrando a História

Crítica de Diogo Spinelli para Contestados, da Cia Mútua (Itajaí/SC)


1: Há pouco mais de um mês, acompanhamos na mídia nacional as notícias sobre a morte do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Philips. Desaparecidos na região do Vale do Javari, segunda maior terra indígena do país, localizada no estado do Amazonas, os dois foram mortos a tiros e tiveram seus corpos queimados e enterrados. No contexto dos assassinatos, estão as denúncias de ambos à pesca ilegal, ao roubo de madeira e ao avanço do garimpo na região.

2: Mesmo com a grande articulação de povos indígenas contra a aprovação da PL 490/2007, que geraram uma série de protestos em junho de 2021, o projeto de lei também conhecido como “Marco temporal”, apoiado por mineradoras, grileiros, pecuaristas e demais empresários, ainda segue em discussão no Congresso Nacional. Sendo aprovado, o projeto impedirá o reconhecimento legal de terras tradicionais dos povos originários, caso essas não tenham sido estabelecidas antes da Constituição de 1988.

Esses são apenas dois fatos recentes que me vieram à mente enquanto assistia à Contestados, da Cia. Mútua (Itajaí/SC), e que exemplificam o quanto as disputas por território regadas a interesses do capital estrangeiro permeiam toda a história de nosso país, em uma linha sucessória de eventos que persiste até hoje – e que ganha especial força e incentivo sob governos federais como aquele sob o qual estamos.

Contestados traz à cena a história da Guerra do Contestado (1912-1916), conflito armado com saldo de mais de oito mil mortos, ocorrido no oeste do estado catarinense, em uma área disputada ente os estados de Paraná e Santa Catarina. A guerra teve início após o governo nacional ter concedido à empresa construtora da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande a posse da terra de ambos os lados da linha do trem, numa área demarcada pela extensão de quinze quilômetros de cada lado da linha férrea.

Assistindo à obra – e pesquisando mais sobre a guerra para poder escrever esse texto – penso sobre como desconhecemos os conflitos nos quais nosso país esteve envolvido, sejam eles internos, sejam aqueles travados com nossos vizinhos latino-americanos. Isso, por sua vez, me faz lembrar de Caranguejo overdrive, da carioca Aquela Cia. de Teatro, que tem como pano de fundo a Guerra do Paraguai (1864-1870), e de todos os espetáculos da saga Os sertões, do Teat(r)o Oficina, baseados no livro homônimo de Euclides da Cunha que descreve a Guerra de Canudos (1896-1897), e penso sobre como, à maneira que ocorre em Contestados, o teatro tem assumido um papel importante no projeto de desenterrar fatos e momentos esquecidos da nossa história. Além disso, penso a quem interessa que sigamos desconhecendo nosso sangrento histórico de lutas que se arrasta até os dias atuais.

Mas voltemos à Contestados. Ao entrarmos no espaço cênico, somos recebidos pelas atrizes Laura Correa e Mônica Longo. Tendo o compartilhamento de um chimarrão como pretexto, as atrizes começam a travar com o público uma conversa acolhedora, onde aparecem questões sobre identidade e pertencimento: o que é ser de um lugar, o que é ser catarinense? Essa conversa serve como introdução ao tema da obra, que se desenrolará em sua maior parte através da contação da história da Guerra do Contestado tendo como base a técnica de teatro de formas animadas conhecida como “figura plana”.

Essa técnica – que eu nunca havia visto antes e sobre a qual passei a conhecer um pouco mais ao conversar com o terceiro integrante da Cia. Mútua, Guilherme Peixoto, após o espetáculo – é derivada da técnica de animação em papel, e consiste na manipulação em cena de desenhos pintados à mão, esculpidos a laser em placas de MDF. Se num primeiro olhar a proposta pode parecer menos dinâmica do que outras linguagens do teatro de animação, dada à característica estática dos desenhos, essa impressão se desfaz assim que começamos a ver como se dá sua operação em cena. Capaz de surpreender e de causar diversos efeitos cênicos, a técnica é utilizada com maestria no espetáculo, sendo um de seus principais pontos de atenção.

A montagem opta por contar a guerra exclusivamente sob o ponto de vista dos vencidos no conflito, conhecidos como caboclos – sendo importante mencionar que, segundo o site do IPHAN, no contexto catarinense o termo “[...]é mais utilizado para representar um ‘modo de ser’ do que para caracterizar um tipo racial”. Esse procedimento, acrescido do fato de ambas as narradoras colarem suas próprias imagens às desses sujeitos – ao ponto de parte da narração ser realizada em primeira pessoa, ao assumirem a voz de uma personagem fictícia presente no conflito – impedem que a história seja apresentada de maneira mais isenta e documental.

Isso faz com que a montagem recaia em certos esquematismos para contar uma história complexa e multifacetada, gerando algumas simplificações maniqueístas. Como exemplo, o tratamento de total adesão dado à figura do monge José Maria de Santo Agostinho, primeiro líder dos campesinos, faz com que não haja um crivo crítico do trabalho com relação ao messianismo inerente ao movimento retratado.

terça-feira, 26 de julho de 2022

Crítica de "Papelê - Uma aventura de papel" - por Diogo Spinelli


 

E agora, vamos brincar de quê?

Crítica de Diogo Spinelli para Papelê: uma aventura de papel, da Téspis Cia. de Teatro (Itajaí/SC)


Uma folha de papel em branco, prestes a ser preenchida com o que tudo o que nossa imaginação quiser.

Esse pode ter sido o ponto de partida para a criação de Papelê: uma aventura de papel, da Téspis Cia. de Teatro (Itajaí/SC), apresentado no 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha. Tendo o papel como matéria-base a ser explorada e transformada, a obra se utiliza de inúmeras técnicas do teatro de formas animadas para criar pequenas narrativas, ou brincadeiras.

Partindo de uma lógica de jogo, no qual tudo pode virar outra coisa, o elenco se diverte manipulando, metamorfoseando e dando vida a variados tipos de papel ao longo da montagem: papel luminoso recortado em formato de confete, caixas de papelão, um rolo de papel kraft, sulfites desenhados, bonecos de papel machê que remetem a dobraduras, dentre outros.

A incessante renovação de situações e de materiais remete às crianças que, após terem explorado determinado jogo até terem encontrado seu limite de interesse, perguntam-se o tempo inteiro: e agora, vamos brincar de quê? A diferença é que em Papelê não há tempo para esse questionamento, já que, mesmo sem que exista a preocupação de gerar qualquer tipo de nexo causal, as situações se sucedem com tanta organicidade, que passamos de uma coisa à outra sem muitas vezes nem nos darmos conta. Há, nesse sentido, algo de onírico no espetáculo: se o teatro de formas animadas já possui a tendência de nos transportar para o reino do fantástico e da imaginação, a vertiginosa dinâmica estabelecida em Papelê parece reforçar ainda mais esse aspecto de sonho.

Interessante também notar como, apesar de possuir no papel como matéria-prima seu ponto de ancoramento, é possível expandir o significado de papel presente no trabalho para aquele relativo ao jargão teatral, ou ainda para o sentido mais amplo de papel social. Ainda que o espetáculo inteiro possa ser lido sob essa chave – para além de sua vestimenta, o que faz com que reconheçamos um rei autoritário, ou uma heroína? – esse conceito de assumir diferentes papeis aparece com mais veemência em um dos momentos mais divertidos da montagem. Nesta cena, as atrizes estabelecem diversas relações entre si ao transformarem-se continuamente em distintos personagens através do simples ato de posicionar placas com diferentes figuras em frente aos seus rostos.

Aliás, essas placas/máscaras também são um elemento indicativo de outro trânsito que acontece no espetáculo: aquele entre os mundos analógico e digital. Tendo como inspiração a linguagem dos emojis, é surpreendente perceber como o grupo conseguiu atribuir potência cênica a esse elemento utilizado de forma tão banalizada em nosso cotidiano. Cabe dizer que a obra foi concebida em meio à pandemia de Covid-19, fator que certamente deve ter influenciado seu processo de criação no sentido de aproximar ainda mais a cena dos elementos do universo virtual. Outro exemplo disso é o uso das projeções, como na cena que remete aos jogos de videogames – que por sua vez, aparecem sobrepostos a referências à linguagem dos quadrinhos.

Da metade para o fim da peça, algumas das figuras que já apareceram em algum momento anterior da obra começam a reaparecer em rápidas inserções. Quando a primeira delas ressurge em cena, escuto uma criança atrás de mim comentar: “de novo, esse?”. Sorrio pensando sobre como, apesar da enorme variedade de situações, figuras e materiais presentes no trabalho, existe nas crianças uma inesgotável ânsia por novidades. Talvez, isso faça parte do nosso processo de conhecer o mundo: o que mais há para descobrir?

Após compartilhar com as e os espectadores uma porção de possibilidades lúdicas, ao final de Papelê o trabalho parece fazer um convite: “Essa foi a nossa brincadeira. Daqui em diante é com vocês: vão brincar de quê?”.

Crítica de "Papelê - Uma aventura de papel" - Por Heloísa Sousa

 

PAPELÊ – UMA AVENTURA DE PAPEL

Téspis Cia. de Teatro (SC)



[Infinitas Dobraduras]


Em 2021, tive a oportunidade de assistir ao espetáculo “Papelê – Uma Aventura de Papel” da Téspis Cia. de Teatro (SC), durante a programação do XIV Festival Velha Joana (MT). Na ocasião, ainda estávamos com medidas muito restritas de isolamento social por conta da pandemia do covid-19 e o festival foi realizado em formato virtual. Portanto, assisti à filmagem da obra. Neste ano de 2022, marcado também pelo retorno aos festivais em formato presencial, pude assistir ao mesmo espetáculo no Teatro Municipal de Itajaí durante a programação do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha.

A perspectiva frontal que o espetáculo adota não me fez ter tanto prejuízo na fruição em relação a filmagem; pude rever as cenas que estavam na minha memória, rir junto com o público naquele momento e me reconectar com a primeira experiência.

A obra, direcionada ao público de todas as idades, traz três atrizes em cena manipulando o papel de diferentes formas para criar diversos jogos, aparências e brincadeiras. Assumindo figuras que se vestem de modo semelhante, não usam a linguagem verbal convencional, mas sonoridades; elas transitam entre imagens, ao invés de histórias. Notável a recorrência de duas ou três atrizes nas obras para o teatro infantil e ainda a opção por uma atuação onde o adulto se assume criança. Esse assumir-se como criança carrega o perigo do estereótipo e da abordagem caricata, por oferecer uma atuação muito expansiva. A visão do adulto sobre a criança não é a visão da criança sobre si mesma.

A fragmentação e acúmulo de situações continua sendo aqui uma recorrência no teatro infantil, mas dessa vez, as imagens formadas são prioridade em detrimento da narração de algo. Não há uma preocupação moralista, mas saltos entre os jogos aos moldes da atenção das crianças. Essa escolha parece uma aposta do teatro moderno e vanguardista para a cena infantil, onde não há nada a ser dito de fato, mas sim a ser experimentado. E talvez essa aposta seja uma das que torna a obra interessante entre outras encenações para esse público, pois replica uma forma despretensiosa de vivenciar o mundo.

Se aproximando do fluxo de brincadeira comum as crianças, elas manipulam papeis de modo a tentar elencar possibilidades de uso/jogo. O papel como roupa, como invólucro, como boneco, como caixa, como adesivo e até a transposição da superfície do papel para as telas. O papel, na realidade, é tido como superfície de projeção da imaginação, maleável como o tecido, riscável como a parede, ou até rígido como o gesso. Talvez por isso, em versões tecnológicas seja a tela que substitui o papel da fotografia, do livro, do desenho, do caderno. A metáfora da “folha em branco” cria contornos tridimensionais nessa obra.

Destaco então o trabalho com os bonecos de papel. Acompanhando a programação do Festival Toni Cunha, o teatro de animação também aparece em cenas de “Cor de quê” e “Contestados”. Além da cenografia impressionante de “Para contar estrelas” com suas maquinarias cênicas. O teatro de animação tem um lugar importante na produção artística e teatral de Santa Catarina, em especial de Itajaí. A feitura singular e a técnica impecável com essa forma teatral revelam outras possibilidades de fruição estética e reorganiza o olhar para essa outra dimensão, criando camadas de percepção que não me eram habituais no teatro. Importante pensar em estratégias para que esse teatro volte a circular de modo relevante em outros festivais nacionais, sendo inclusive pensado para o público adulto como faz a Cia. Pigmalião de Belo Horizonte.