Amar, é crime?
Crítica de Diogo Spinelli sobre Amar é crime, de Jônata Gonçalves (Itajaí/SC)
O espetáculo Amar é crime, monólogo de Jônata Gonçalves (Itajaí/SC) com direção e dramaturgia de Max Reinert, parte de uma seleção de textos de três livros do autor pernambucano Marcelino Freire para apresentar ao público narrativas curtas sobre o amor, sob o ponto de vista de figuras marginalizadas em nossa sociedade. Na sessão realizada durante a sétima edição do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, a presença de um bar no local de apresentação, vendendo bebidas alcóolicas para serem consumidas antes ou durante o espetáculo, e o horário de exibição da obra, realizada às 22h30m, auxiliaram a instaurar uma aura de “sessão maldita”, dialogando diretamente com a atmosfera dos inferninhos e cabarés evocados pela obra.
Em cena desde a abertura do espaço, meia-hora antes do início do espetáculo, acompanhamos Jônata realizando os últimos ajustes em sua pesada maquiagem enquanto recebe e tece pequenos comentários junto ao público. Há nesse momento prévio a construção de certa intimidade e cumplicidade entre as e os espectadores e o ator, numa camada de interpretação mais próxima do ator-ele-mesmo. Assim que o espetáculo tem início de fato, essa chave de interpretação é substituída por um registro interpretativo teatral mais convencional, no qual o ator reveza-se entre narrador e personagens dos contos que compõem a dramaturgia.
A caracterização de Jônata, que remete à figura de uma drag queen semi-montada, com sua maquiagem completa, porém ainda destituída de peruca, faz com que se tornem dúbias às identidades de gênero e orientações sexuais das figuras retratadas pelo ator a cada novo conto, não sendo possível afirmar com certeza se quando as personagens se referem a si mesmas no feminino, estamos ouvindo a história de uma mulher cis ou trans, ou de um homem gay afeminado, ou ainda qualquer outra identidade do amplo e diverso espectro de gênero e sexualidade.
Essa indefinição joga com a percepção individual de cada espectador sobre cada história, fazendo com que nos deparemos com nossos próprios preconceitos ao imaginar quais seriam os corpos a que aquelas histórias pertenceriam. Ao mesmo tempo, essa opção da encenação minimiza a possibilidade de que o espetáculo possa ser lido como praticante do transfake – ainda que essa linha seja tênue e o risco de ultrapassá-la esteja presente constantemente, ao termos em cena um ator homem cis, performando aspectos de feminilidade.
Na variedade de textos escolhidos para compor a obra, nos quais o valor positivo dado ao conceito de amor inclui invariavelmente algum contraponto negativo que o acompanha, destacam-se aqueles nos quais Marcelino Freire assume pontos de vista infantis para descrever as situações de violência – inclusive sexual – associadas à inocência e à ternura. São nesses contos, poéticos e cruéis na mesma medida, que as diferentes soluções narrativas e cênicas encontradas pela direção e pela atuação para a contação de cada crônica alcançam especial singeleza, como na cena do encontro entre uma criança, seu pai e uma travesti, contada toda através da manipulação de objetos.
Somente nos trechos finais do trabalho a chave de interpretação que aproxima o ator de suas próprias vivências, utilizada no momento de recepção do público pré-espetáculo, é de certa forma retomada. Em um dos últimos contos apresentados, aquele que narra a história de um ator, Jônata utiliza de seu nome próprio para fundir-se à personagem do conto de Marcelino Freire. Porém, é a última cena, na qual são projetadas algumas fotos de infância, que abre ainda mais brechas para leituras autobiográficas, fazendo com que surja o questionamento sobre de que modos as experiências pessoais do ator – ou de demais integrantes da equipe de criação da obra – estão presentes no espetáculo que acaba de ser apresentado. Uma vez que essa camada de interpretação está apontada tanto no início quanto no fim do trabalho, seria interessante vislumbrar como ela poderia permear o restante da encenação, tanto tensionando quanto comentando a obra de Marcelino Freire sob o ponto de vista das vivências do ator.
Se é certo que ainda se faz mais do que necessário lutar por uma sociedade mais equânime e justa, bem como dar voz às pessoas que sofrem preconceito por suas formas de amar, me pergunto o quanto as narrativas de Amar é crime – desde o seu título, homônimo a um dos livros de Freire dos quais foram selecionados os textos da obra – reiteram ou não a ideia de um certo ciclo de sofrimento ao qual essas figuras dissidentes parecem estar invariavelmente destinada a experimentar seja antes, durante ou depois de vivenciarem o amor.
Talvez seja o momento de transformarmos, conjuntamente, tal afirmação em questionamento e nos perguntarmos: amar, é crime?
P.s.: Um dos privilégios de poder acompanhar a programação completa de um festival como o 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, de Itajaí (SC), é conseguir ir aos poucos percebendo como um trabalho lança luzes sobre outro. Escrevo esse texto sobre Amar é crime após ter assistido à O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer, da Cia. De Teatro Acidental (São Paulo/SP). Vislumbrar os diálogos possíveis entre essas duas obras, que em parte versam sobre questões semelhantes, mas possuem abordagens bastante distintas, é um instigante exercício de pensamento. Contrastar as figuras das crônicas apresentadas por Jônata Gonçalves com os discursos de ódio proferidos na peça paulista faz com que a experiência de assistir às duas obras seja de alguma forma complementar, e que a presença dos dois trabalhos na mesma programação potencialize a ambos, a partir do mosaico curatorial que vai se construindo ao longo dos dias de festival. Mas isso, já é assunto para outro texto.
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