Sangue, porra, sangue nas mãos.
Crítica de Diogo Spinelli para Rinha do Grupo Risco de Teatro (Itajaí/SC)
Respirações.
Respirações ofegantes.
Demonstrações de força e virilidade.
Demarcações de território.
Algo ronda a arena onde se dará o embate de Rinha, do Grupo Risco de Teatro, de Itajaí (SC), antes mesmo deste começar. Algo animalesco está à espreita. Algo que incomoda e intimida. Algo que espera a hora certa pra atacar.
***
Leões,
ursos, búfalos.
Primatas.
Em todo o reino animal não é raro encontrar exemplos de espécies cuja função principal dos machos seja a de proteger seu clã.
Não de predadores.
Não.
De protegê-los contra a ameaça do domínio de outros machos.
Macho contra macho.
Quando um confronto desses ocorre, o que está em jogo não é a segurança do grupo, mas a do próprio alfa em manter sua posição de poder.
Toda luta entre machos é na verdade uma tentativa de autopreservação.
***
Criado a partir de entrevistas com dois lutadores, Rinha performa a bestialidade da masculinidade tóxica expondo-a com crueza. Na cena, convertida em ringue de boxe, Rafael Orsi de Melo e Rodolfo Lemos revezam-se entre assumir as figuras desses lutadores e a comentá-las, num constante movimento de entrar e sair dessas personagens, mas sem que as passagens entre essas duas instâncias sejam fortemente demarcadas do ponto de vista do registro de interpretação. É a alternância no discurso entre a primeira e a terceira pessoa a responsável por traçar a divisão.
A dramaturgia pautada no revezamento entre um eu e um ou mais eles revela a filiação do processo de criação ao de Homens Pink – Rinha tem a direção do ator e diretor Renato Turnes, da Cia. La Vaca – ainda que aqui, o mesmo procedimento documental de realização de entrevistas evidencie o relato de eles bastante distintos em relação aos eles da obra florianopolitana.
A fisicalidade da obra, que tem como base os movimentos de boxe, faz com que a violência trazida nos relatos seja presentificada em cena, vivenciada nos corpos dos atores, exigindo destes um refinado controle corporal e vocal. Se em determinados momentos o texto é impulsionado pelo esforço físico gerado pelos socos desferidos pelos atores entre si ou em um saco de pancadas, em outros há uma dissociação entre esses elementos, conservando-se uma naturalidade no tom de voz, apesar das condições físicas inóspitas. Deriva dos murros uma musicalidade que também contribui para pontuar a narrativa, auxiliando a construir no campo sonoro a atmosfera de agressividade que permeia o trabalho de seu início até o fim.
A tensão instaurada pelos sons de respiração e pelas movimentações dos atores ao redor da área cênica durante a entrada do público – que retornarão ao fim do espetáculo, indicando uma ação cíclica sem resolução – se mantem durante toda a duração da obra, sem que haja nenhum momento de alívio possível, dada a densidade da temática trabalhada. Movidos por sentimento semelhante ao que ocorre quando diminuímos a velocidade para observar um acidente de trânsito, misto de repulsa e fascinação, seguimos observando atentamente àquela briga de galos. A violência nos paralisa. Não nos esquivamos diante dos jabs, dos ganchos, dos cruzados. De certa forma, Rinha também nos violenta.
A sequência de situações relatadas durante o espetáculo apresenta o universo dos entrevistados – seus contextos familiares, suas justificativas para as brigas, sua ética da brutalidade – sem humanizá-los ou criticá-los em demasia. Cabe a nós, como público, a tarefa de posicionar-se frente a esse círculo vicioso de ignorância e opressão.
Ainda que as e os espectadores não possuam experiências pessoais aproximadas às retratadas no trabalho, impossível não pensar de que modo essa lógica de destruição e violência nos afeta em vários aspectos do nosso cotidiano e do nosso estar no mundo – e o quanto dela carregamos em nós mesmos, sem que às vezes percebamos. Abordar essas questões em cena e repensar os lugares de masculinidade no mundo são projetos urgentes e iniciativas como essa, corajosas.
Rinha é um soco no estômago.
Nada agradável de se tomar.
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