quinta-feira, 4 de agosto de 2022
Donativos arrecadados durante o Festival de Teatro são entregues a Casa São Vicente de Paulo
7º Festival de Teatro Toni Cunha contemplou cerca de 200 artistas e público estimado de 4 mil pessoas
terça-feira, 2 de agosto de 2022
Crítica de "Vem ver nosso boi brincar" - Por Heloísa Sousa
VEM VER NOSSO BOI BRINCAR: UMA HOMENAGEM AO CANTADOR ARNOLDO CUECA
Cia. Experimentus (SC)
[Para vibrar memórias...]
O aparecimento das vanguardas artísticas europeias e todas as transformações estéticas e filosóficas surgidas no início do século XX influenciaram diretamente o teatro e a dança que se seguiram no Ocidente depois desse marco temporal. O surgimento da arte da performance, enquanto linguagem artística, também atravessa essas expressões e apresenta o que passamos a nomear como cena contemporânea ou cena pós-dramática, por alguns. Algumas características tornam-se marcantes como a aproximação radical entre arte e vida, afastamento das formas excessivamente representativas e miméticas, valorização da fragmentação na cena e outros ritmos, e assim por diante. Aspectos como narração e personagem dão espaço para uma cena mais imagética e sensorial; assim como, no Brasil, expressões da cultura popular parecem se tornar cada vez mais distantes de uma cena contemporânea e performativa que centraliza outras questões em cena. Embora haja muita performatividade, visualidade e interação naquilo que nomeamos como tradição.
O excesso de virtualidade e formas de interação mediada por telas também colabora para um apagamento das tradições populares que costumam se manifestar no aqui-agora, na presença, na brincadeira, na rua e na oralidade. É notável o esforço de muitos artistas, pesquisadores e pesquisadoras em continuar se debruçando sobre os brincantes e suas práticas na tentativa de que essa cena não desapareça e apague uma memória importante da nossa base cultural.
A Cia. Experimentus (SC) escolhe, então, fazer isso através do próprio teatro. No espetáculo “Vem ver nosso boi brincar”, a atriz e musicista Natália Pereira faz uma homenagem ao seu avô, o cantador Arnoldo Cueca, um dos grandes nomes da cultura popular brasileira e um dos responsáveis por sustentar a tradição e brincadeira do Boi de Mamão em Santa Catarina. A encenação opta por um formato simples de contação de histórias. Em uma relação frontal, Natália, em parceria com o ator e musicista Vinícius Ferreira, apresenta a história do seu avô de modo tão singelo que parece uma conversa íntima com o público sobre uma parte importante da sua vida. Eles apresentam algumas músicas, as personagens da brincadeira, a história que se brinca no Boi de Mamão, intercalado com a reprodução da voz do próprio Arnoldo contando algumas memórias e impressões. A narração tem uma abordagem implicada, não é apenas uma história narrada em terceira pessoa; é uma memória que está sendo compartilhada com o público. E essa memória compõe um imaginário de um povo, mas também compõe o imaginário de uma menina que cresceu vendo tudo isso de perto. É essa ponte entre o coletivo e o íntimo da memória que constrói a afetividade da obra.
Como mulher nordestina me impressiona as semelhanças estéticas e narrativas entre as brincadeiras com os bois. Em um país de dimensões continentais como o Brasil, aquela obra me mostrava figuras brincadas na Região Sul e que me faziam acessar as memórias precárias que tenho sobre as tradições populares com os bois da Região Nordeste. As vestimentas, os bonecos de barro, as histórias, as sonoridades, as cores e estampas. Ao mesmo tempo, tudo marcado por um outro sotaque e uma outra infância. Penso, como são tão distantes e tão parecidos? É que as migrações e trocas também caracterizam esse país e o povo da minha região sempre foi muito andarilho. E de repente, eu nordestina me sentia tão próxima daquela mulher sulista.
Falo de minha própria memória como precária porque, nascida na capital potiguar, nunca havia tido contato com manifestações da cultura popular do meu estado antes de ingressar na universidade; qualquer menção anterior a esse período era folclórica, distanciada e estigmatizada. Pensei em como eu gostaria de ter assistido um espetáculo como aquele na minha infância. E em como isso teria sido importante para minha formação como sujeito no mundo em relação com os aspectos culturais que me rodeiam e que atravessam diretamente meu contexto, ao invés de apenas tomar como referência, obras, fazeres e artistas importados.
Nessa obra, a Cia. Experimentus traz a contação de histórias e apresentação de personagens como escolhas centrais. Interessante começa a ver essa teatralidade tornar-se presente novamente após sucessivas explorações de dramaturgias sensoriais, onde as histórias e seus desenvolvimentos dramáticos não eram os principais, além de uma afirmação das narrativas pessoais ou das composições imagéticas sem o apoio do texto verbal. Enquanto espectadora de muitas ditas cenas contemporâneas, assistir essa outra abordagem que parecia ter se perdido em algum tempo passado, sinto uma oxigenação da cena quando esses aspectos retornam, quase anacronicamente, mas se apresentam com outra energia após repetitivos formatos documentais ou com uma “performatividade” engessada.
É que contar histórias é também um dos princípios da fabulação e da elaboração de memórias, e, enquanto comunidade, precisamos de ambas para sublinhar um passado e projetar algum futuro. E essa escolha parece visível nas cenas apresentadas nesta edição do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha. Espetáculos da mostra local escolhem narrar histórias que foram quase apagadas em nosso país como faz a Cia. Mútua (SC) com “Contestados”, ou ainda a possibilidade de criar ficções ou narrações a partir de depoimentos reais onde a história dos artistas e de outras figuras imaginadas (ou não) parecem se cruzar como em “Rinha” do Grupo Risco de Teatro (SC) e “Homens Pink” da Cia. La Vaca (SC). A mostra nacional também faz reverbera isso, assistimos personagens e ficções em “Tragédia” do Quatroloscinco Teatro do Comum (MG) de um modo que fazia tempo que eu não via em festivais de teatro, ou ainda na instalação cênica “Biblioteca de Dança” da Dimenti Produções (BA) que abre mão de praticamente qualquer artifício cênico material para construir presença com narrações e memórias.
Em “Vem ver nosso boi brincar”, a simplicidade da encenação que se apoia em soluções mais convencionais de apresentação da história não deixa de emocionar a plateia. Engraçado como colocar essa frase em uma crítica de teatro também me parece anacrônico e esquisito. Exploramos tão radicalmente outras formas estéticas que parece que palavras como “personagem, “história” e “emoção” não seriam mais capazes de nos gerar uma experiência. Mas, a história do cantador Arnoldo Cueca emociona; e o faz pelo reconhecimento das imagens que se apresentam, pelo esforço daquele homem em manter as brincadeiras, pelo desejo daquela menina em tornar o avô presente, pela relação humana com a ludicidade, pelo percurso e pelas pessoas envolvidas.
É quando o teatro gera comunhão.
Crítica de "Vem ver nosso boi brincar" - por Diogo Spinelli
A memória viva
Crítica de Diogo Spinelli para Vem ver o nosso boi brincar: uma homenagem ao cantador Arnoldo Cueca, da Cia. Experimentus Teatrais (Itajaí/SC).
[para ler ouvindo a trilha sonora do espetáculo, disponível em: https://soundcloud.com/natalia-pereira-269422482]
Vem ver o nosso boi brincar: uma homenagem ao cantador Arnoldo Cueca, da Cia. Experimentus Teatrais, de Itajaí (SC), como já é possível antever por seu subtítulo, é um tributo ao legado de Arnoldo José Pereira, popularmente conhecido por Arnoldo Cueca. Brincante de Boi de Mamão por mais de quatro décadas, Cueca foi fundador e mestre do Grupo Folclórico Boi de Mamão e Dança Portuguesa de Itajaí.
Essa reverência se torna ainda mais relevante quando sabemos que a atriz Natália Pereira, que divide a cena com Vinícius Ferreira, é neta de Arnoldo Cueca. Assim, a obra apresenta a história do mestre não sob um ponto de vista estritamente documental, mas pelo olhar afetuoso e implicado de sua neta que aprendeu a brincar observando e participando das brincadeiras do avô. Ao trazer à cena a história de Arnoldo Cueca e de seu Boi de Mamão, Vem ver nosso boi brincar vincula-se assim a vários dos trabalhos que compuseram a grade do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha que possuem a memória como procedimento de criação, disparador, ou até mesmo, temática, sendo esse um dos eixos que perpassou a programação de forma transversal.
No espetáculo, entremeado por cantigas do cancioneiro popular tocadas e cantadas ao vivo pela dupla de atores, somos levados a conhecer um pouco da história de vida e de como surgiu a ideia de Mestre Cueca em retomar a tradição popular do boi. Além disso, Natália reperforma o Boi de Mamão do avô, ao trazer à cena – ou como diríamos na linguagem da cultura popular, ao botar – cada uma das figuras que compõem/compunham essa brincadeira.
Transformadas agora em pequenas figuras de barro, são apresentadas, além do próprio Boi, as figuras do Toureiro, do Cavalo Meirinho, da Tirolesa (ou Maricota) e também da Bernunça. Mesmo apresentando essas figuras em tamanho de bolso, o trabalho consegue instaurar junto à plateia – sobretudo, a mirim – a mesma sensação de medo, assombro e encantamento instaurada pela brincadeira tradicional do Boi de Mamão. O reconhecimento da Bernunça por parte de uma das crianças, assim que ela foi apresentada, também parece demonstrar o quanto o universo das tradições populares e do folclore continua presente no imaginário infantil da região, sendo passado de geração a geração. Essa figura, uma espécie de papão próxima do que seria a figura do Jaraguá nos Bois de Reis potiguares – com a diferença de que a Bernunça come de verdade uma criança cada vez que entra na roda – é a responsável, aliás, por um dos momentos mais divertidos do espetáculo.
Se o trabalho causa diversão, em outros momentos evoca uma atmosfera nostálgica, movendo-se entre e singeleza a poesia, como nos quais nos são apresentadas outras manifestações populares da região, como a dança do Pau de Fitas (também convertida em miniatura) e o Terno de Reis. Porém, são os causos do próprio Mestre Cueca, presentificado no trabalho através de áudios de gravações de conversas, que fazem com a obra fale ainda mais diretamente aos nossos afetos e às nossas saudades.
É de grande beleza perceber como em Vem ver o nosso boi brincar Natália faz com que o Boi de Mamão de seu avô siga vivo e brincante. Igualmente emocionante é ouvir no pé do ouvido algumas pessoas mais velhas da plateia acompanharem baixinho algumas das canções que compõem o espetáculo, e identificar que a obra realmente fala para todos os públicos: apresentando a tradição para os mais jovens, e evocando as memórias dos mais antigos.
Termino esse texto com uma passagem de Câmara Cascudo – vinculando o Rio Grande do Norte à Santa Catarina, nessa despedida da nossa cobertura desta edição do Festival – que é citada na dramaturgia do espetáculo. Neste trecho, Cascudo diz que o cantador é o “[...] registro, a memória viva, [...] a presença do Passado, o vestígio das emoções anteriores, a História sonora e humilde dos que não têm história” (CASCUDO, 2005, p.128). Em Vem ver o nosso boi brincar, a Cia. Experimentus presta uma homenagem não apenas a Arnoldo Cueca, mas à história de todos aqueles que vieram antes de nós e que seguem vivos brincando em nossos corpos, em nossas vozes e em nossos corações.
[Caso não tenha ouvido a playlist, recomendo fortemente que você ao menos escute agora a essa canção: https://soundcloud.com/natalia-pereira-269422482/05-marejei-touro].
Referência Bibliográfica:
CASCUDO, Câmara. Memória, história e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.
domingo, 31 de julho de 2022
Crítica de "Casa" - por Heloísa Sousa
CASA
Grupo Porto Cênico (SC)
[De nós para os bebês]
Ao final do espetáculo, uma das atrizes distribui fotografias de sua infância ou da infância de seus filhos para as crianças sentadas na primeira fileira. A última criança a receber a foto era um bebê sentado no colo de mãe. A mãe pega a fotografia e mostra ao bebê. Ele pega a foto amassando.
Outra criança menor diz sucessivas vezes “azul”, quando um dos refletores com a cor azul se acende. Ela repete a palavra mesmo quando a cor do refletor muda para um tom entre o roxo e o rosa.
Uma criança que aparenta ter entre dois e três anos, sentada no colo da mãe, observa a peça atentamente, observa as outras crianças ao lado dela também, em vários momentos no decorrer da peça.
Uma criança ri de modo gostoso quando uma das atrizes ri em cena. E cada vez que a atriz ri, a criança ri junto novamente.
Uma das crianças sentada na fileira de trás se mantém concentrada na obra por uns quinze ou vinte minutos. Em um momento, se levanta e diz “quero sair” esboçando um choro. A mãe levanta-se e sai com a criança, no escuro, se esforçando muito para não fazer barulho. O celular cai no chão. Ela apanha. As duas saem. Eu observo.
Se o espetáculo “Casa” do Grupo Porto Cênico (SC) é o resultado de uma pesquisa sobre como criar peças para bebês de zero a três anos de idade; para nós, adultos, o espetáculo é assistir as crianças assistindo ao espetáculo. A primeira infância possui uma série de peculiaridades que exigem outras abordagens para que haja experiência e aprendizagem. Bebês estão descobrindo seu próprio corpo, os outros e o espaço; compreendendo como articular ações que consideramos simples como andar, falar, segurar; além de terem outra forma de comunicação que não é pela articulação dos verbos como nós fazemos. É um corpo se transformando da forma mais radical. Em poucos anos, esses bebês desenvolvem dezenas de habilidades básicas e complexas para conseguir interagir no mundo. Isso junto com toda a sua capacidade sensível, história e subjetividade.
Para os bebês não há os signos, mas a sensorialidade. O que eles têm é o próprio corpo habitando o mundo. Logo, seu modo de apreender está relacionado aos estímulos imagéticos, luminosos, sonoros, táteis, entre outros; a apreensão de uma narrativa não é uma prioridade e nem uma capacidade desenvolvida quando se é muito pequeno. Seu foco está nas sensações e não no encadeamento lógico das situações. Sua urgência de aprendizagem é no sentir o mundo, muito mais do que em compreendê-lo ou capturá-lo racionalmente. Nesse sentido, parece que a obra “Casa” tenta apresentar diferentes sons, cores e movimentos para esse público em um tempo mais ralentado, apostando na serenidade como forma de imersão na experiência. Confiando na atenção dos bebês, as duas atrizes em cena recuperam suas próprias memórias de infância e narram algumas situações com seu próprio corpo, objetos de tecido e instrumentos sonoros. Algumas palavras e situações são repetidas até que se instaure uma imagem, aguardando o tempo da sensação, para em seguida sugerir outra coisa.
Mas, ainda existe um fio narrativo em paralelo que parece querer apresentar uma obra aos adultos que acompanham as crianças. O público a que se destina o espetáculo, provavelmente, não precisa desse fio narrativo; não por incapacidade, de fato, mas por essa não ser uma prioridade em suas experiências no mundo. Enquanto para os adultos, observar a atenção desses bebês para com a obra se transforma na experiência em si.
Escrever sobre uma peça criada para os bebês parece uma atividade desafiadora, visto que o processo criativo da obra é atravessado por uma pesquisa sobre como criar uma experiência estética e cênica para essa faixa etária com todas as peculiaridades que lhe cabe. Seria, talvez, importante conhecer mais da pesquisa para compreender e analisar as escolhas na obra. O que me faz pensar sobre as especificidades das múltiplas linguagens teatrais e como a crítica teatral vai dando conta dessas diferentes técnicas e formas de enunciação e expressão. O que exige diferentes críticos de diferentes saberes escrevendo sobre diferentes obras.
Ainda assim, é possível observar questões da obra postas na própria apresentação. Se a narrativa parece servir mais ao público adulto do que ao público infantil, ela acaba por reiterar papeis sociais questionáveis. Na obra, a figura do pai é uma ausência assumida e abissal, apenas a mãe está ali como casa e para casa, sozinha, cuidando. Cuidando da casa, da criança, entretanto, talvez, quem sabe, se for possível, cuidando de si. A criança chama, ela tenta escapar, mas está ali. A presença dela é inquestionável e aprisiona. “Não é só mãe quem gerencia o cuidado”, diz Venusiane, uma amiga da cidade de onde vim. Mas, na narrativa do espetáculo “Casa”, o cuidado parece restrito a essa figura, e por mais que haja afetos e histórias em torno dessa relação de amor que se estabelece entre mãe e filhe, desde a gestação (em caso de maternidade biológica) até o observar a criança crescendo fora de si, é importante observar a reverberação desse texto nas mães que carregam seus filhos para todos os lugares, sendo abandonadas ao cargo exclusivo de cuidado e pressionadas pela sociedade a abdicar de sua singularidade.
Muitas e muitas narrativas oníricas, imaginárias e fantásticas são possíveis para gerar experiências sensíveis aos bebês; dando inclusive outras possibilidades de relação com as materialidades dos espaços e dos corpos. Pensando na própria pesquisa da criação de brinquedos que observam os estímulos das matérias, as relações corporais implicadas e os aprendizados disso por meio do vivenciar a coisa. Ao invés de recuperar memórias, a ação de criar memórias é um caminho para esse público.
E vivenciar, aprender, sentir não implica, necessariamente em silêncio. Talvez, tenhamos associado concentração à instauração do silêncio, no mundo adulto. Mas, isso não é um axioma. Os corpos produzem ruídos na experiência também, diálogos, expressões de riso, choro, angústia, medo, expectativa; geram sons ao mover-se, ao adaptar-se. Ainda mais quando os códigos sociais ainda não estão completamente formatados no corpo e a espontaneidade das reações imperam. O aviso que antecede ao espetáculo sobre a necessidade do silêncio para que a obra aconteça, institui uma norma em corpos tão pequenos e que ainda não tem controle de suas funções. E esse aviso recai sobre os acompanhantes que se responsabilizam ali, socialmente, pelas reações daquelas crianças. O público adentra o lugar teatral com certa tensão, receio de atrapalhar algo que parece tão frágil e sutil: a obra. Embora a obra teatral aconteça no espaço entre o público e o artista e não necessariamente, no palco sacralizado.
Crítica de "Casa" - por Diogo Spinelli
Sobre quietudes e inquietações
Crítica de Diogo Spinelli para Casa, do Grupo Teatral Porto Cênico (Itajaí/RS)
Enquanto aguardávamos na área interna da Casa de Cultura Dide Brandão, onde Casa, do Grupo Teatral Porto Cênico (Itajaí/SC), foi apresentado como parte da programação do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, a maior parte do público do espetáculo corria pelo pátio interno, saltitava, explorava os espaços, os sons – e um deles já havia até mesmo cortado o lábio nesse ínterim. O que ocorre é que o trabalho criado pelo coletivo itajaiense tem como público-alvo bebês de 0 a 3 anos de idade, e eram esses bebês e crianças, acompanhados por seus pais e (na maior parte) por suas mães, que compunham a fila de entrada para ver a obra.
Nela, as relações entre mãe e filhos na primeira infância constituem o eixo principal da dramaturgia, numa atmosfera que remete ao ato de contar histórias à cama como forma de embalar os sonhos dos pequenos, e a essa sensação, ou a esse momento do dia, nos quais não estamos nem totalmente dormindo, nem totalmente despertos. Esse ambiente é reforçado tanto pelos figurinos das duas atrizes em cena, que remetem a camisolas, quanto pelos próprios elementos de cena, dentre os quais se destaca o uso de lençóis, que se transformam em camas, oceanos, fantasmas, bebês... Esse ambiente noturno, propício ao compartilhamento de memórias e histórias (e talvez até alguns segredos) é retomado ainda pela dramaturgia, que repete em variados momentos a construção “Na minha casa, à noite”.
Ao contrário do que comumente associa-se às produções destinadas ao público infantil, Casa é uma obra que opta pelo pouco uso de cores em seus figurinos e adereços, cabendo à iluminação colori-los apenas em determinados momentos como forma de auxiliar na construção imagética sugerida pelas memórias das atrizes Valéria de Oliveira e Aline Barth. Do mesmo modo, as sonoridades propostas evocam um ambiente de delicadeza, e ao mesmo tempo, remetem ao universo cotidiano do público-alvo, com a utilização do som das águas e de canções que se assemelham a cantigas de ninar. Assim, em vez de expor as crianças a vários e excitantes estímulos, a obra parece buscar, como contraponto, um caminho que aposta na simplicidade e na quietude.
Foi interessante perceber como aquelas mesmas crianças que corriam e se agitavam do lado de fora do espaço cênico ficaram imersas na obra a partir dessa outra chave de comunicação proposta pelo trabalho. Não que essa imersão tenha significado assistir à obra imóveis e em silêncio. Ao contrário. O constante comentário sonoro produzido por esse público, que em um ambiente de teatro adulto seria considerado fora da norma ou até mesmo desrespeitoso, torna-se aqui parte constituinte do espetáculo.
Além disso, esse ato funciona, sobretudo, como um reflexo das apreensões do público-alvo sobre o que está sendo assistido e experienciado. Desse modo, choros, risos, balbucios de palavras – dentre as quais invariavelmente escapa um ou outro “mãe” – ecoam os temas e as situações que são apresentadas no palco, contribuindo inclusive na criação de ambiências sonoras para o trabalho. Nesse sentido, as orientações prévias dadas às mães e aos pais pela produção do espetáculo antes deste se iniciar, referentes à proposta da obra e a relação esperada entre esta e o público-mirim, soam demasiadamente disciplinadoras e pouco acolhedoras com relação às possíveis inquietações que poderão surgir nessa comunicação entre as crianças e o espetáculo, desconsiderando que é justamente através dessas intervenções que o diálogo entre essas duas instâncias se estabelece.
Ao ter como principal eixo dramatúrgico a figura materna, Casa parece destinar-se não apenas ao público da primeiríssima infância, fazendo com que seu discurso dialogue também com as mães que acompanham seus rebentos nessas que podem ser suas primeiras experiências com a linguagem teatral. Apesar do trabalho trazer uma versão romantizada e por vezes idealizada da maternidade – talvez por olhar para essa figura pelo filtro do passado –, pouco próxima das dificuldades e contradições cotidianas enfrentadas pelo público de mães (e pais) presentes na plateia, a narrativa do espetáculo possibilita que essa fatia do público revisite suas próprias lembranças de infância, ou ainda, reflita sobre que futuras memórias desejam construir no hoje junto a seus filhos e filhas.
sábado, 30 de julho de 2022
Crítica de "Proibido Acesso" - por Heloísa Sousa
PROIBIDO ACESSO
Karma Coletivo (SC)
[Entrando pelos fundos]
Qual o espaço do erotismo e da pornografia no teatro? Sabemos seu espaço na literatura, no cinema, na dança, nas artes plásticas (de onde a pornografia se origina, por sinal, em afrescos da Antiguidade com imagens de conteúdo sexual), na música também. E no teatro? Nessa dita arte do encontro, onde a cena acontece no aqui e agora, onde a proximidade entre os corpos público-artista é mais desafiadora, como a excitação tem espaço nisso? E quando reitero a questão sobre esse espaço é porque considero o erotismo uma camada relevante e forte nas subjetividades e que atravessam os modos como nos relacionamos no mundo. Lembro então de alguns artistas do teatro atuando em São Paulo, capital, que tem reapresentado essa tônica e marcado uma das possibilidades discursivas e estéticas da cena contemporânea brasileira. Carolina Bianchi quando fala de transar com o espaço na construção de algumas de suas obras, Janaína Leite com a mais recente peça “História do Olho – Um Conto de Fadas Noir-Pornô” (2022) junto com outras obras e experimentações derivadas de sua pesquisa sobre a pornografia como o “Camming 101 Noites” (2021) e os pornoshows, e ainda as criações do Teatro da PombaGira a partir do homoerotismo.
Trago, então, a obra “Proibido Acesso” do Karma Coletivo (SC) para dentro dessa listagem de montagens contemporâneas que centralizam essa discussão. Ao mesmo tempo que tenho dúvidas se o erotismo e a pornografia na arte entram, de fato, como temática e discussão, ou se, ao contrário, são muito mais um campo de experimentação. A aproximação entre o sexo e a ludicidade permite que a cena erótica adentre lugares de celebração, descoberta e prazeres cujos acessos nos são proibidos. O que acontece entre quatro paredes é excluído do campo social, por vezes até dos campos políticos, trazendo a intimidade para uma zona do não-dito, não-afirmado, embora absurdamente desejado coletivamente.
O Karma Coletivo é um grupo catarinense que já vem experimentando entre o teatro, a dança e a performance em sua trajetória, borrando essas fronteiras institucionalizadas entre as linguagens artísticas. Em “Proibido Acesso”, essa qualidade estética é explícita, há uma sobreposição de dança, de montagem de imagens, de recursos audiovisuais e de exposição de depoimentos que nos deixa diante de uma obra que muda seus contornos continuamente. Há uma escolha minimalista na coesão e quantidade dos elementos de cena; mas, a obra mostra como não é preciso recorrer à exagerada simplicidade de uma cadeira e um ator para instaurar uma imagem forte na cena. Entrar no Teatro Municipal de Itajaí e ver a primeira instalação já é o início da obra e já convoca uma percepção. Uma atitude muito simples do ator em cena, de parecer que está mascando um chiclete e sentar-se com uma abertura corporal, já estabelece um convite, uma oferta e um controle. É uma cena atenta aos detalhes das texturas, cores e pontos luminosos. A cenografia me faz lembrar de “MDLSX” da Cia. Motus (Itália) ao mesmo tempo que o uso da cor preta nos objetos, chão, figurinos e adereços me lembra as cenografias de Tadeuz Kantor (Polônia) e sua habilidade em criar perspectiva em cena com uma cor que tende a uniformização.
Acho que já escrevi isso em algum outro texto ao longo dessa experiência intensa de acompanhar parte da cena de Itajaí pelo Festival de Teatro Brasileiro Toni Cunha, o quanto alguns artistas dessa cidade tem uma habilidade e pensamento elaborado sobre cenografia e teatro de animação, conseguindo expansão e espacialidades complexas com poucos elementos de cena. Destaco, nesse sentido, tanto a cenografia de “Proibido Acesso” quanto a de “Rinha” e a de “Para Contar Estrelas”, ou ainda os objetos de cena e animação que aparecem em “Contestados” e “Papelê – Uma Aventura de Papel”. Reitero que esse é apenas um dos aspectos notáveis na cena de Itajaí apresentada neste ano de 2022 durante o festival. A precariedade dos recursos cenográficos parece ser quase sempre uma questão delicada para cidades que não são capitais e costumam não receber o mesmo orçamento para cultura que outras cidades maiores; embora seja a própria precariedade que faz o artista encontrar outros modos de criar sem despotencializar suas ideias, o que não deve ser tomado como solução ou romantização, mas que não deixa de ser um sintoma evidente.
Ao fundo de “Proibido Acesso”, uma projeção toma conta de quase toda a parede e apresenta uma sucessão de frases ou vídeos que se associam as outras imagens de cena, por vezes satirizando, por vezes contrapondo e por vezes replicando. Os vídeos que evidenciam o corpo do ator e suas relações de toque consigo mesmo, em ligeiras masturbações em looping com a própria boca, lembram os videoartes do Teatro das PombaGira. Se em alguns momentos os vídeos compõem sincronicamente com a cena, como a projeção de He-Man junto com a narração da foda feita pelo ator com voz distorcida; em outros, as cenas projetadas capturam a atenção de modo a quase nos dissociar da cena em si. Há uma hipnose da imagem.
A imagem é uma questão na obra. Existe uma dramaturgia dos signos em “Proibido Acesso”, onde algum objeto ou imagem trazido para o espaço parece abrir uma cadeia de significados no espectador que dispensam quaisquer outras narrativas, ações maiores ou algo que explique e destrua a imagem em autocelebração. E o que o signo pede é que ele tenha espaço para se instaurar, como no ato longo de banhar o corpo com óleo – uma ação apenas estendida e tomando o tempo necessário para se concluir – é esse mesmo tempo que permite que a imagem em si se construa e que outros sentidos, como o cheiro, se apresentem. E nesse ponto, temos o erótico como anunciação. Aquilo que contorna.
Mas, se a obra parece apostar nessas imagens e seguir para uma exploração da presença do ator em cena e o tempo estendido dos seus movimentos; por outro, parece trair seu próprio procedimento quando apresenta a narração sobre o que envolveu a criação da obra, buscando uma abordagem documental ou formalismo poético daquilo que é puro gozo e experiência. São as narrativas muito objetivas, limpas e documentais que retiram a excitação da cena e nos deixam a mercê de outros processos racionais não tão urgentes naquele momento.
“Proibido Acesso” traz ao centro aquilo que está escondido no subterrâneo, os dark rooms dos nossos desejos, as práticas de bdsm e as fissuras entre risco e gozo. Ao mesmo tempo que enaltece o corpo do jovem, branco, homem com musculatura definida replicando as esculturas europeias renascentistas que mostram como nossa excitação está vinculada a uma cultura imagética padronizada e repetida. É uma peça íntima, não exatamente pessoal e muito menos com pretensões políticas de articulação coletiva; mas, íntima. E então, qual o espaço do erotismo, da pornografia e da intimidade no teatro? Qual o espaço da memória e imagem criadas ao bel prazer, mas não da ordem do deleite estético, mas da busca por o que pode [sentir] o corpo para subverter a máxima espinosana?
A linha curatorial da mostra local desse festival vai se delineando mais a cada apresentação que assistimos e poder observar a cena local por esse recorte tem sido uma das coisas que mais me instiga em eventos como esse. Percebo a recorrência de homens protagonistas no teatro adulto desse recorte, onde inclusive a sexualidade e as performances de gênero são as questões que tomam o centro. As mulheres atrizes aparecem nas montagens infantis e de animação, sem restrição etária do público. Nesse ponto, lembro então do texto de Audre Lorde, “Os usos do erótico e o erótico como poder” e deixo aqui o último parágrafo de seu texto, para também encerrar o meu, como provocação para o que virá.
“Reconhecer o poder do erótico em nossas vidas pode nos dar a energia necessária pra fazer mudanças genuínas em nosso mundo, mais que meramente estabelecer uma mudança de personagens no mesmo drama tedioso. Pois não só tocamos nossa fonte mais profundamente criativa, mas fazemos o que é fêmeo e autoafirmativo frente a uma sociedade racista, patriarcal e anti-erótica” (LORDE).